O Visconde Cortado ao Meio
Italo Calvino
Tradução: José Manuel Calafate
Capa: João da Câmara Leme
Colecção O Livro de Bolso nº 17
Portugália Editora, Lisboa s/d
Chegara à adolescência e escondia-me ainda entre a raízes descobertas
das grandes árvores do bosque, contando histórias a mim mesmo. Uma agulha de
pinheiro podia para mim representar um cavaleiro, ou uma dama, ou até um bobo
da corte; eu imaginava-os movendo-se diante dos meus olhos e perdia-me em
histórias intermináveis e fantásticas. Mas, depois, subitamente, sentia
vergonha destas divagações e fugia, pelos bosques, sei lá de quê ou de quem.
Por fim, chegou também o dia em que até o próprio doutor Trelawney me
abandonou. Certa manhã, entrou no golfo da nossa região uma esquadra de navios
ostentando o pavilhão inglês. Toda Terralba desceu à praia, para observar,
excepto eu, que não sabia. Nos parapeitos das amuradas e pela mastreação,
multidões de marinheiros exibiam ananases e tartarugas e desenrolavam cartazes
em que havia máximas e inglesas pintadas. Na ponte, no meio dos oficiais de
tricórnio e cabeleira, o capitão Cook olhava pelo óculo a praia, e mal
descobriu o doutor Trelawney, deu ordens para que, com bandeirinhas, lhe
transmitissem a seguinte mensagem:
«Venha já para bordo, doutor. Temos de continuar aquela partida de
sete-e-meio.»
O doutor despediu-se de todos os habitantes de Terralba e
abandonou-nos. Os marinheiros entoaram o hino: «Oh! Austrália!» e o doutor foi
içado para bordo a cavalo num barril de vinho carrascão. Depois levantaram
ferro e partira.
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