segunda-feira, 26 de abril de 2021

O RITMO DAS HORAS VULGARES DO DIA


13 de Julho de 1966

Hoje, às 8 da manhã, já eu estava debruçado da varanda da sala, a ver deslizar as gentes de carne de trabalho que se dirigiam para a escravatura diária nas fabriquetas próximas do Bairro Industrial de Alvalade, onde moro). Operários de ganga surrada, empregadotes de lancheiras (que reforçam a solidão) e raparigas, muitas raparigas a sacudirem as ancas para serem raparigas. Alguma bonitas, maior número de feias e quase todas graciosas nos seus vestidos de fazendas de miséria, comprados a prestações.

Aqui e ali pares de namorados a aproveitarem a frescura da manhã para as mãos torcidas dos idílios…

Perto das nove, porém, a paisagem humana foi-se alterando.

Começaram a dobrar as esquinas os burocratas da A.E.G. mais dormidos e calmos. Divisei até várias alemãs pernudas… E um ou outro director a fechar, solene, a porta do carro e a pisar a rua com a dignidade de naturalizá-la germânica…

Depois tudo adquiriu o ritmo das horas vulgares do dia… E sentei-me a devorar o pequeno-almoço, entristecido por não sei que sensação de existirem no mundo pessoas a mais que banalizavam até à mediocridade os sentimentos e as paixões, impossíveis de dividir por tanta gente.

Urgência de rebentar horários…

José Gomes Ferreira em Dias Comuns I Volume

Legenda: José Gomes Ferreira viveu desde 1956 na Avenida Rio de Janeiro no nº 33 2º andar esquerdo.

1 comentário:

Seve disse...

E na Avenida Rio de Janeiro à porta do nº 33 lá está uma placa a assinalar o facto..