José Cardoso Pires, no seu Alexandra Alpha, deixou as contas feitas:
Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias.
1.
A Assembleia Nacional ainda abriu para mais uma sessão que acabou por não se
realizar por falta de quorom, o que levou o presidente Engº Amaral Neto,
a marcar sessão para o dia seguinte, à hora regimental.
Durante anos e anos massacraram-nos
com afirmações de alto patriotismo, que se alguém atentasse algo contra o
regime, dariam o peito às balas, mostravam-se prontos a morrer, venderiam cara
a vida. Alguém poderá ter acreditado, mas quando a hora chegou, não cumpriram
uma palavra das promessas que nos atiraram à cara, o palavreado foi-se pela pia
abaixo, uns fecharam-se em casa, outros fugiram do país.
2.
Num repente, ficaram sem tropas,
sem carros de combate, sem barcos, sem aviões.
Via rádio, mostraram a quem os ouviu, que não
sabiam sequer dar um passo pequenino que fosse, altas-patentes-medalhadas,
trocaram diálogos completamente patéticos:
- Urgente. Escuto!
- O Chiado está fechado por viaturas saídas do Terreiro do Paço. O Largo do
Carmo está cheio de viaturas, canhões apontados para o quartel. A situação é
esta: só tenho aqui com viaturas, dois pelotões da Guarda e o resto da tropa
apeada, Infantaria 1 foi para o Rossio e levaram os carros e não tenho contacto
com eles.
- E então o que é que se há-de fazer?
- Não sei. Escuto. Não vejo solução… talvez aguardar…
- A nossa aposição é um tanto ou quanto ridícula. Estamos todos juntos aqui no
Largo da Misericórdia aparentemente divorciados do resto da guerra. Tenho a
impressão, salvo melhor opinião, que seria conveniente regressar a quartéis.
- Creio que há um ultimato até às 2 horas para entregar o Presidente do
Conselho. Não sei se é verdade. Escuto.
- Que possibilidade vê de prosseguir a acção, com que meios, porventura, pôr à
sua disposição.
- Não vejo possibilidade porque está tudo atravancado. Consegui limpar aqui o
largo mas há muita população aqui metida no meio que não nos hostiliza porque
julga que estamos do outro lado. Situação um bocado delicada de forma que não
vejo bem maneira, a não ser com meios aéreos que possa limpar um bocado aquilo,
porque a infiltração não me perece viável. Escuto!
3.
Marcelo Caetano, os ministros
Moreira Baptista, Silva Cunha, outras ratazanas, refugiaram-se no Quartel da
GNR no Carmo que, num ápice, ficou rodeado pelas tropas do Capitão Salgueiro Maia,
de todo um povo exultante de alegria.
Tempo de Marcelo perguntar ao
comandante do quartel como estava a evoluir a situação. O silêncio do oficial
mostrou-lhe que a situação era gravíssima. Ainda perguntou pela marinha, pela
força aérea mas não obteve qualquer resposta.
Mandou telefonar ao General Spínola para negociações
de modo a que o poder não caísse na rua.
Entretanto, sabia-se que o
venerando chefe de estado estava refugiado na sua residência particular no
Restelo. Falou ao telefone com Marcelo e estava disposto a resistir às tropas
do MFA. Não se sabe domo, com que meios, com que tropas, prova provadíssima que
o homem sempre fora um perfeito ignorante do que quer que fosse, excepto cortar
fitas na inauguração de uma qualquer chafariz perdido em nenhures, um
realíssimo cabeça-de-nabo, tal como o povo lhe chamava.
Marcelo ter-lhe-á dito que nada
havia a fazer e que preparasse a mala para no dia seguinte voar para a Madeira.
Marcelo Caetano e os ministros,
depois de abandonarem, numa «chaimite», o quartel do Carmo, pernoitaram no
quartel do Regimento de Engenharia 1 da Pintinha.
No dia seguinte, às 07,40 horas,
descolou da Portela um avião que levou toda aquela tropa fandanga para o
Funchal.
Alexandra Alpha há um tempo
largo que andava às voltas do Largo do Carmo e imediações, para encontrar o seu
mini-austin que sabia, de certeza absoluta, que deixara por ali pois, queria
mesmo o carro porque, de modo algum, podia perder a libertação dos presos
políticos em Caxias.
«Afinal acabou por descobri-lo em cima do passeio e junto à mesma
árvore onde o deixara há quase uma eternidade. Tinha uma multa por
estacionamento proibido, afixada no para-brisas.»
4.
Miguel Torga escreverá no seu
Diário:
«Coimbra, 25 de Abril de 1974 –
Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os
últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos
apreenderam com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas
pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de
parada…»
Vergílio Ferreira escreverá no
seu Conta-Corrente:
«Vitória. Embrulha‑se‑me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção
violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida
inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai
acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é
excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir.»
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