Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista
perguntou. Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu,
nâo, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e
o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra
ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou- -se, abriu a bolsa
que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como
se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida
entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada
em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um
fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar,
reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o
contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de
todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia
destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem
e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que
o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém
morreu.
José Saramago em As Intermitências da Morte
Legendas: fotografia Shorpy
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