sábado, 10 de abril de 2021

OLHAR AS CAPAS


As Inumeráveis Águas

Nuno Júdice

Capa: Dorindo Carvalho

Colecção Cadernos Peninsulares nº 6

Assírio & Alvim, Lisboa Abril de 1974


Dobro o joelho perante o poema. Mais precisamente,

não só o joelho, mas o corpo todo, e as mãos, até formar

os dois termos de uma figura em cuja interpretação

gastei os olhos e o espírito. Mas o impulso criador libertou-me

desse efémero exercício, atraindo-me ao domínio

da especulação mais abstracta sobre as palavras,

unido em figuras de outro tipo os objectos mais diversos

e contraditórios. Obtive assim um estranho universo,

não o reflexo ou a imagem deste, mas por vezes o seu contrário,

e outras vezes algo que já se situava depois (ou antes)

e em que o brilho intenso do ser original contaminava

o próprio gesto verbal ou poético, despertando-me da letargia

da vida comum, incitando-me ao contacto físico

com essas outras realidades essenciais e primitivas.

Pouco depois, porém, voltando a mim, levantava-me

recuperando o sentido geral do mundo e do acaso. A relação

entre a chávena de café e dois dedos, o polegar

e o indicador, da mão direita, prendia toda a minha

atenção; e ao tactear o rebordo ainda quente,

como se cumprisse um culto, descia vertiginosamente

para dentro da vida, onde finalmente me surpreendia

quieto, com a respiração baixa e o olhar fixo

na súbita revelação de nada.

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