As Inumeráveis Águas
Nuno Júdice
Capa: Dorindo Carvalho
Colecção Cadernos Peninsulares
nº 6
Assírio & Alvim, Lisboa
Abril de 1974
Dobro o joelho perante o poema.
Mais precisamente,
não só o joelho, mas o corpo
todo, e as mãos, até formar
os dois termos de uma figura em
cuja interpretação
gastei os olhos e o espírito.
Mas o impulso criador libertou-me
desse efémero exercício,
atraindo-me ao domínio
da especulação mais abstracta
sobre as palavras,
unido em figuras de outro tipo
os objectos mais diversos
e contraditórios. Obtive assim
um estranho universo,
não o reflexo ou a imagem deste,
mas por vezes o seu contrário,
e outras vezes algo que já se
situava depois (ou antes)
e em que o brilho intenso do ser
original contaminava
o próprio gesto verbal ou
poético, despertando-me da letargia
da vida comum, incitando-me ao
contacto físico
com essas outras realidades
essenciais e primitivas.
Pouco depois, porém, voltando a mim,
levantava-me
recuperando o sentido geral do
mundo e do acaso. A relação
entre a chávena de café e dois
dedos, o polegar
e o indicador, da mão direita,
prendia toda a minha
atenção; e ao tactear o rebordo
ainda quente,
como se cumprisse um culto, descia
vertiginosamente
para dentro da vida, onde
finalmente me surpreendia
quieto, com a respiração baixa e
o olhar fixo
na súbita revelação de nada.
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