domingo, 18 de abril de 2021

QUE TEREI EU NA MÃO?


Marselha, 25 de Dezembro de 1932

Viajar não é bem o que diz a Agência Cook. Aquela honrada companhia de mostrar o mundo é, sem saber, uma espécie de agência funerária duma prematura morte com guia e tudo. Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.

Nesta hora, aqui deitado na cama dum Hotel Continental, a ouvir os passos dum milhão de pessoas na Canebiére, que sou eu? Uma pura ressonância morta duma vida longínqua.

Quando amanhã me erguer, ressuscitar, e for outra vez manjerico na minha terra, deste dia, desta hora, desta grande cidade, do que fui nela, que terei eu na mão? Nada, porque não foi nada aquilo que o Lázaro trouxe da sepultura.

Miguel Torga em Diário Vol. I

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