sexta-feira, 30 de novembro de 2018

SOU SÓ BOM NISSO


Na Paris do clochard da La Hune, inúmeros preparativos para o centenário do nascimento de Samuel Beckett, aquele escritor que, quando no inquérito de um jornal lhe perguntaram porque é que escrevia, deu a resposta mais breve, mais «bonsai» e apenas com três sílabas: «Bon qu’à ça» «Sou só bom nisso». Maldita piada que Beckett acharia a todas estas homenagens. Deduzo que acabarão por se converter em algo que o próprio Beckett já definira muito bem: «queca de verbo».

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel

Legenda: Samuel Beckett

OLHAR AS CAPAS




O Ano de 1393

José Saramago

Ilustrações: Graça Morais

Capa: Henrique Cayatte

Editorial Caminho, Lisboa Novembro de 1987

Nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro lugar nos desloquemos a ele.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

MANHÃ CLARA


Calcorreamos as últimas páginas do Ofício de Viver de Cesare Pavese.
A 28 de Novembro de 1949 perguntava: «Mas se um dia não volto a mim».

18 de Dezembro de 1949

Ontem à noite vento quente, leitura de mitos e lendas africanas. É manhã, manhã azul, fresca e calar de sol. As lendas são a história do que acontece pela primeira vez e têm um aspecto de simplicidade e um lado prodigioso. Mesmo se contam um facto não original, o tom é este: simples designação, nunca descrição, nem adjectivos; estrutura rítmica que constitui o drama, o suspense.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

IGNOTO DEO


Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu Sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai..., grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim! 

José Régio 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

POSTAIS SEM SELO


O dia acorda o dia e, lentamente, nos preparamos para envelhecer.

Vasco Lima Couto

BERNARDO BERTOLUCCI (1941-2018)


Bernardo Bertolucci morreu em Roma aos 77 anos.
Guardo, para sempre, dois filmes memoráveis: «1900» e «Um Chá no Deserto».
Motivos muito meus.
Obrigado.

MAS CLARO... FOI PROVIDENCIAL!


A carta que lhe escrevi precisamente dez minutos antes de tirarem o correio deste café donde lhe escrevo foi para mim uma tortura por não ter tempo de me explicar como convinha e ser obrigado a uma secura e brevidade falsas mas de todo o modo preferível a não lhe escrever ou a dar-lhe razões confusas ou truncadas. (Mas só a sua atitude de compreensão fraternal me ajudar a sair da má-consciência dessa carta!)
Foi realmente descuido não lhe ter enviado os livros em fins de Outubro. Depois. Dá-se o inexplicável… pois sabendo eu que V. partia no dia 25 só lhe mando os livros no dia 24 quando havia o perigo de V. não os receber por já ter embarcado. Mas o «inexplicável» foi isto: como tinha bastante dificuldade em arranjar os cinco ou seis escudos para lhe enviar os livros registados (note-se que supunha ser muito mais e não sabia se teria a coragem de tromper les CTT, pelo perigo eventual que podia correr se houvesse uma revista, declarando que eram livros, em língua portuguesa, pois, como V. sabe os estrangeiros pagam muito mais) fui adiando até ao dia 23, dia limite em que tentei obter o dinheiro e não o consegui, indo como qualquer criança meter-me na cama, maldizendo-me por me suceder uma coisa tão« inexplicável» como esta, e sofrendo já um frio terrível dos mal-entendidos e reputações ofendidas ou simplesmente confirmadas malgré tout – por outras palavras, sofrendo que V. justamente me depreciasse quando eu desejaria que V. tivesse por mim consideração e estima em troca do alto apreço em que sempre o tive, mesmo antes de o conhecer. No dia 24, ainda havia uma esperança de obter o dinheiro e talvez os livros chegassem antes de V. embarcar. Quando já desesperava, alguém veio oferecer a minha mãe 20$00 que deviam ser entregues a meu pai como oferta do dia do seu aniversário que transcorrera dois ou três dias antes e que não foram entregues na devida altura simplesmente porque o ofertante não se encontrava em Faro. Este recomendara insistentemente a minha mãe que os entregasse a meu pai, mas claro… foi providencial!

Certamente que leram bem sobre as dificuldades económicas de António Ramos Rosa.

E mais à frente, escreve:

E agora, ouso, permito-me pedir-lhe um favor mais. Não li a sua Coroa da Terra, o único livro seu que não conheço. Não estou pensando que V. mo ofereça, embora saiba que de boa vontade o fará se puder: queria tão só que mo emprestasse, na certeza de que o devolverei quando quiser.


Legenda: desenho de António Ramos Rosa

OLHAR AS CAPAS



Picada Mortal

Rex Stout
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 194
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Não havia motivo para não me mandar a mim buscar a cerveja, pois o caso do Fairmont National Bank ficara concluído na semana anterior e, além de eu não ter nada que fazer, Nero Wolfe nunca hesitara em mandar-me calcorrear a Murray Street para lhe compara uma caixa de pomada para os sapatos, se dela acaso precisava. Mas o Ftitz é que foi buscar a acerveja. Logo a seguir a almoço, ainda ele não tivera tempo de lavar os pratos, a campainha tocou na cozinha, a chamá-lo, e, depois de receber as suas ordens, Fritz saiu com a «baratinha», que deixávamos sempre estacionada em frente de casa. Voltou uma hora depois, com o banco atravancado de cestos cheios de garrafas. Wolfe estava no escritório – eu e ele chamávamos-lhe assim; Fritz chamava-lhe biblioteca. Eu estava na sala de entrada a ler um livro que me parecia sem pés nem cabeça, acerca de ferimentos provocados por armas de fogo, quando olhei para a janela e vi Fritz para junto ao passeio. Como era uma boa desculpa para desentorpecer as pernas, levantei-me e fui ajudá-lo a tirar os cestos do carro e a trazê-los para a cozinha. Mal começáramos a arrumar as garrafas no armário, ouviu-se de novo a campainha. Segui Fritz até ao escritório.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

HIGHWAY OF THE BLUES


“Lord the 61 Highway
It’s the longest road I know
She run  from New York City
Run right by my baby’s door”
(Mississippi Fred McDowell)

A Highway 61 é também conhecida por “Highway of the Blues” por duas razões: porque atravessa a região do chamado Delta do Mississippi, que foi onde se afirma que um Blues rural mais genuíno nasceu e se desenvolveu em toda a sua plenitude; e  porque foi por essa estrada acima, muitas vezes a pé e à boleia e tocando nos diversos Juke Joints que lhes surgissem no caminho,  que partiram os velhos bluesmen à procura de melhores condições de vida do que aquela que tinham, no Sul em geral, e nas plantações onde muitos trabalhavam, em particular.

Alguns não quiseram ou não puderam partir. Deixaram-se ficar no trabalho duro das suas plantações, arando a terra atrás de mulas, colhendo o algodão ou, com alguma sorte e com a progressiva mecanização da agricultura, guiando tratores durante décadas e cantando e tocando nas vizinhanças, nos tempos livres, para arrecadar alguns tostões suplementares. Até serem descobertos ou redescobertos muitos anos mais tarde e levados em ombros para Nova York, como sucedeu com Mississippi John Hurt, do qual um dia vos falarei.

O destino desta peregrinação variou ao longo dos anos,  em função do arrojo, da ambição  e da ligação à terra natal que cada um desses músicos manifestava:  uns mantiveram-se no Delta e ficaram por  Clarksdale ou nas suas  proximidades, fazendo dessa terra o mais importante lugar do Blues no Mississippi nos anos 20 e nos anos 30; outros subiram até Memphis e instalaram-se em Beale Street; outros ainda, mais arrojados, seguiram mais para Norte até St. Louis, que foi também uma importante cidade do Blues; outros, finalmente e mais tarde, subiram ainda mais longe até Chicago, que nos anos 40 e 50  foi a capital do blues nos Estados Unidos. Os blues desenvolveram-se aí de tal maneira que deram origem a um “sub-género”, os chamados “Chicago Blues”, mais eletrificados, com nomes como Muddy Waters, Howlin’ Wolf  e Sonny Boy Williamson, todos eles oriundos do Mississippi.


Mas não se pense que a vida dessa gente era fácil nas cidades onde se instalavam. Tinham de trabalhar no duro nas fábricas, como todos os outros, até surgir uma oportunidade de serem valorizados através da sua música. Muddy Waters, por exemplo, um dos maiores intérpretes do Blues moderno, partiu da sua plantação de Stovall  para Chicago em 1943, andou durante anos a guiar camiões durante o dia e a tocar à noite onde calhava, e só no final dessa década começou a ter algum sucesso, após ter assinado pela Chess Records. Mas por cada um que obtinha sucesso, muitos outros se mantiveram na obscuridade.

Em 1927 uma verdadeira tragédia económica e social abateu-se sobre o Mississippi, fazendo com que a “Highway 61” não fosse apenas o caminho dos bluesmen, mas de uma boa parte da população do Delta, expulsa à força das suas terras. Após semanas de chuva intensa, vários diques de água cederam em Abril desse ano e o rio Mississippi transbordou, provocando uma cheia gigantesca que ainda hoje é considerada a maior tragédia do género em toda a história dos Estados Unidos. Apenas no Verão desse ano a situação começou a normalizar. Cidades ficaram inundadas, plantações foram devastadas e estima-se que metade da população negra do Delta do Mississippi foi obrigada a emigrar para o Norte, à procura de condições de subsistência na grande indústria de Detroit e nos grandes matadouros de Chicago.

Tanto o Blues como a Folk têm uma grande capacidade para captar e integrar nas suas “letras” os acontecimentos e as histórias do dia-a-dia, pelo que não é estranhar que, pouco tempo depois, muitas tenham sido as músicas que se debruçaram sobre este desastre ecológico. A mais conhecida das quais é capaz de ser “High Water Everywhere”, que Charley  Patton compôs no ano seguinte. Mais de 70 anos depois, Bob Dylan  - Mr. Zimmerman again! – rendeu-lhe uma bela homenagem, com “High Water (for Charley Patton), que faz parte do seu álbum “Love and Theft”, de 2001.

A tragédia da cheia não atingiu apenas o Estado do Mississippi, mas também muitos outros estados limítrofes. A fuga das populações foi massiva e estima-se que, só no Estado do Mississippi, um quarto de toda a população negra tenha emigrado para o Norte. E com ela muitos bluesmen. Quase sempre pela “Highway 61”…

No “Delta Blues Museum” de Clarksdale encontrei uma frase de um tal Mike Rewe, estudioso do “Chicago Blues”, que achei curiosa e que resume toda a história:

“While segregation created the blues, migration spread the message”


Quer isto dizer que se esta tragédia afetou em muito a situação do Mississippi e dos músicos do Delta, não afetou tanto os blues a nível nacional. Tanto mais que a indústria discográfica estava em verdadeira fase de expansão e que toda essa população negra deslocada para o Norte, impossibilitada de escutar “ao vivo” a música que no seu dia-a-dia sempre se tinham habituado a ouvir, vai tornar-se a população-alvo dos chamados “Race Records”.

As gravações de Blues não começaram nessa altura, mas muitos anos antes. Embora se trate de um instrumental que pouco tem a ver com o género vocal de que estou a falar, consta que a primeira gravação de uma música a conter blues no seu título foi “Memphis Blues”, que W.C. Hardy gravou para a Victor em 1914 (Mr. Zimmerman, que nestas coisas não perde pitada, far-lhe-á também uma referência no seu “Suck Inside the Mobile with the Memphis Blues Again…). Essas gravações tiveram uma difusão relativamente restrita, tanto mais que as condições de reprodução não estavam ao alcance de todas as bolsas.

Mas a tecnologia evoluiu, as condições e a qualidade de gravação e reprodução melhoraram significativamente com a chegada dos aparelhos Victrola  e dos novos 78 rpm mais leves e duráveis, tornando a música gravada mais acessível.
Neste novo contexto, muitas foram as companhias discográficas (Paramount, Victor, Okeh, …) que decidiram gravar a “música dos negros”, para uma minoria branca que já se mostrava interessada, mas sobretudo para uma imensa maioria negra. São esses discos interpretados por negros, muitas vezes gravados por negros e maioritariamente destinados à população negra que vieram a ser designados por “Race Records”. Esse “boom” discográfico sofreu um forte abalo com o “crash” de 1929, mas algumas editoras sobreviveram e a situação voltou a melhorar durante a década de 30, quando o New Deal de Roosevelt deu uma oportunidade de melhores condições de vida a uma boa parte da população americana.  


Um outro acontecimento que muito ajudou à difusão do Blues nesses tempos, e ao sucesso comercial dos discos, foi o início das emissões radiofónicas. Algumas dessas Rádios, na década de 40, eram geridas por negros e destinadas, maioritariamente, à população negra. Foi o caso da WROX, de Clarksdale, e da WDIA de Memphis, onde se iniciou B.B. King.       
Vou terminar regressando à Highway 61, para vos dizer que é curioso que uma estrada tão importante para a história do  blues tenha tido, na época, tão poucas canções a imortaliza-la…  Só a partir da década de 50 começam a surgir algumas músicas que lhe são inteiramente dedicadas. Nenhuma delas fará parte da Grande História, mas talvez as de Mississippi Fred McDowell e de James “Son” Thomas (“61 Highway Blue”) sejam as mais interessantes. Embora o primeiro devesse estar perdido de bêbado quando imaginou a estrada a passar em New York City, coisa que nunca aconteceu…!

Fontes:
Não sendo eu um historiador do “Blues”, todo o conhecimento que tenho é em segunda mão. Assim sendo, para a preparação desta minha viagem foi importante a leitura ou releitura das seguintes obras: “Alan Lomax – The Land Where the Blues Began, 1993”; “Roger Stolle – Hidden Story of Mississippi Blues, 2011”; “Robert Santelli e Outros – American Roots Music, 2001”; “Howard Mandell – The Illustrated Encyclopedia of Jazz and Blues, 2005”, de que existe tradução portuguesa nas Edições Afrontamento.
Importante foi também, como não podia deixar de ser, a revisão dos 7 episódios de Martin “Scorsese Presents the Blues”.
A tudo isto acresceu o que aprendi e registei em todos os museus que visitei e nos lugares históricos por onde passei.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

HIGHWAY 61 REVISITED


Mr. Zimmerman desde muito cedo nos habituou às suas traquinices.

A mais recente das quais aconteceu no ano passado, quando se silenciou durante vários dias à espera que a Academia Sueca lhe pedisse desculpa por o ter incomodado com a atribuição de um Prémio Nobel.

Esta de que agora vos falo terá sido outra, embora muito mais antiga…
Goste-se ou não dele – eu aprecio a Obra, em geral, mas não o Homem - a memória de Mr. Zimmerman tem muita força e um amante de música jamais poderá atravessar a Highway 61 sem se lembrar do seu sexto álbum, “Highway 61 Revisited”, de 1965.

Mas porquê ter evocado a Highway 61 numa altura em que, tendo acabado de espetar vários  pregos no caixão da Folk  mais tradicional,  a sua música se  afastava já claramente noutras direções…?

Alguns dizem que é uma homenagem ao “Blues”, mas de verdadeiro “Blues” não consigo ver nada de significativo neste disco, a não ser o título de duas músicas (“Tomstone Blues” e “Just Like Tom Thumb’s Blues”), que com o “Blues” de que vos falo pouco ou nada têm a ver….

Vou à estante à procura de uma pequena pista que me ilumine, e também não vejo nada. Encontro coisas como “Folk eletrificado”, “puro Rock ‘n’ Roll” e até o insuspeito Jacques Vassal, no seu livro “Folksong”, diz que o disco é “Pop Moderno” de uma ponta à outra…!

No que respeita à estrada em si, o disco tem, de facto, uma música que se chama “Highway 61 Revisited”, cuja letra é daquelas que exigem curso universitário e pós-graduação, para finalmente podermos chegar à conclusão que tanto pode significar uma coisa, como o seu inverso…  Mas que muita coisa por lá se passa na “Highway 61”, lá isso é verdade… Até a encenação de uma III Guerra Mundial, com bancadas para a assistência e tudo… Deve ser a isso que “The Illustrated Encyclopedia of Rock” chama “a sustained level of extraordinarily lyricism”…
Talvez que tudo não passe de uma “private joke”, como que a dizer que se os velhos “blues” puderam ser “eletrificados” e sobreviveram ainda com mais força, porque razão não o poderia ser também a Folk Music…

Não sei...


Talvez que Mr. Zimmerman se tenha dado ao trabalho de se explicar numas das poucas entrevistas que vez o favor de conceder, mas em boa verdade não sei…

Não sou nem quero passar por ser um grande “especialista” de Mr. Zimmerman.
Mas que, segundo ele próprio conta,  a atração que sentia pela Highway 61 sempre foi muito antiga, isso sei muito bem…

No primeiro volume das suas “Memórias” (estamos há 14 anos à espera do segundo, outra traquinice, certamente…!) Mr. Zimmermam conta que a Highway 61 lhe estava no sangue e era o seu verdadeiro lugar no Universo. Uma estrada que passava na cidade onde tinha nascido, perto do lugar onde vivia e da qual se servia para ir a todo o lado, quanto mais não seja em sonhos de aventuras “on the road”, na companhia de Sal Paradise e Dean Moriarty.

Mas, bem lá no fundo, o que ele ansiava era por liberdade e Robert Sheldon, biógrafo de Mr. Zimmerman e uma das maiores sumidades da Folk americana acerta na mouche quando afirma:

“If you have been born in a place like Duluth and if you were raised in a very, very parochial town like Hibbing, Minnesota, you had to start making your escape plans. Very early Highway 61 became to him, I think, a symbol of freedom, a symbol of mouvement, a symbol of Independence, and a chance to get away from a life he didn’t want in that town”
(in Documentário da série “Tales of Rock ‘n’ Rol” sobre “Highway 61 Revisited”)

Talvez então que as coisas sejam bem mais simples e que tudo não passe de uma mera fantasia da minha parte, ansioso por encontrar conexões em tudo e mais alguma coisa. Talvez que Robert, o “motard” com ar de “rock” e uma “t-shirt” da Triumph na capa do disco, estivesse só com nostalgia da estrada quando lhe deu esse nome…


O que é curioso é que os anseios de libertação através da estrada do jovem Robert nos finais dos anos 50, tal como os de tantos outros tantos adolescentes na América, sobretudo após a publicação do livro do Jack Kerouac, são exatamente os mesmos que sentiram muitos dos velhos “bluesmen” e “jazzmen” do Sul profundo, 40 anos antes, embora por motivos diferentes, como vos contarei um destes dias.

Mas já que, a propósito da Highway 61, falei tanto de liberdade e evoquei Jack Kerouac e os sonhos da  “beat  generation” e, posteriormente, do movimento “Hippie”  que o seguiram, talvez venha a talhe de foice recordar que foi também   muito perto dessa estrada que, simbolicamente, tudo se acabou….
“Easy Rider” é, como se sabe, um marco da “Contracultura” americana dos anos 60/70 e um dos filmes que deu maior impulso ao surgimento de um novo tipo de cinema na América, aquilo a que Peter Hiskind chamou a “Nova Hollywood”.
 E é em Krotz Springs, no Louisiana, a muito poucas milhas da “Highway 61”, que acaba  “Easy Ryder”, naquela pavorosa cena final em que os dois “motards” interpretados por Peter Fonda e Dennis Hopper são mortos a tiro de caçadeira por um duo de inofensivos agricultores locais, “just to watch them die”, como na canção do  Johny Cash. E depois a câmara sobe até ao céu deixando ver os corpos deitados e a mota em chamas e aparece um rio que poderia ser o Mississippi, mas não é, enquanto Roger McGuin arranca lentamente com a “Ballad” que acompanha o genérico final:
“The river flows, it flows to the sea
Wherever that river goes, that’s where I want to be”

Uns dias antes, pouco antes de ter sido ele próprio morto à paulada pela calada da noite, o jovem advogado interpretado por Jack Niicholson, que bebia whiskey pelo gargalo em memória de D.H. Lawrence, já lhes tinha explicado, em conversa, porque razão eles iriam morrer:
“- Sabem, este costumava ser um país formidável. Não compreendo o que se passa…
- Acobardaram-se todos, é o que é. Nem num hotel de 2º…. num motel de 2ª conseguimos entrar. Acham que os vamos degolar ou coisa assim…Têm medo.
- Não têm medo de vocês, têm medo do que vocês representam.
- Só representamos quem precisa de cortar o cabelo…
- Não. O que vocês representam é a liberdade.
- E que mal tem a liberdade…? Ela é o mais importante.
- Ela é o mais importante, sim senhor, mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. Quer dizer, custa muito ser-se livre quando se é comprado e vendido no mercado. Mas nunca lhes digam que não são livres senão vão matar e mutilar só para provar que são. Vão falar convosco e falar convosco e falar convosco sobre liberdade individual. Mas quando veem um individuo livre, sentem medo…
- Mas isso não os põe a fugir assustados…
- Não. Torna-os perigosos…”  

Se nenhum outro mérito tivesse, “Easy Rider” ficará sempre, para mim, como o filme premonitório do fim de um Sonho, o final de uma Utopia...Quase a acabar o filme já Peter Fonda tinha desabafado, com ar dolorido: “estragámos tudo…”.
O filme foi lançado em Julho de 1969. Em Agosto desse ano, Woodstock ficou célebre mas já não correu muito bem. Altamont, em Dezembro, foi um desastre… No ano anterior tinham sido assassinados Martin Luther King Jr e Robert Kennedy. A América tão depressa não voltaria a ser a mesma…


Quanto à Highway 61, ela é, juntamente com a Route 66, uma das estradas mais míticas de todos os Estados Unidos da América.

Acompanha de perto o rio Mississippi e, no seu trajeto atual (já foi maior no passado…), rasga o país de Norte a Sul ao longo de perto de 2.300 Km, ligando as cidades de Wyoming, no Minnesota e New Orleans, na Louisiana, passando perto, ou não muito longe, de cidades tão importantes como Detroit, Chicago, St. Louis, Nashville e Memphis.

Fiz apenas cerca de 600 km nesta estrada entre Memphis e Batton Rouge, já às portas de New Orleans.

Mas, em boa verdade, não foi a “Old Highway 61” que eu fiz, mas sim a nova “Interstate 61…

Como quase sempre sucedeu nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século passado, os tempos modernos trouxeram consigo um crescente tráfego rodoviário e a velha estrada foi destruída e substituída por uma nova, com várias faixas de rodagem.

Na região do Mississippi onde passei a velha 61 está abandonada, destruída e nalguns locais positivamente esventrada, como vi em várias fotografias, sendo muito pouco transitável.

Na Route 66 ainda tinha tido o prazer de me sentir na pele de um Tom Joad, rodando na velha estrada durante algumas centenas de quilómetros.
Mas aqui tal não seria possível…

Decidi, por isso, não ir ver os destroços e deixar a estrada à minha imaginação.
E avancei para o Sul em direção ao mar, como faz o rio na canção do Roger McGuin.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira 

domingo, 25 de novembro de 2018

sábado, 24 de novembro de 2018

MODOS DE LEITURA


Ouvir alguém ler em voz alta é muito diferente de ler em silêncio. Quando se lê, pode-se fazer paragens ou saltas as frases: do tempo decidimos nós. Quando é outro a ler é difícil fazer coincidir a nossa atenção com o tempo da sua leitura: a voz ou segue muito rápida ou muito lenta.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A MORAL DA HISTÓRIA, SEGUNDO O SENHOR DA CAMA 28


A esperança é a última coisa a morrer,
disse ele antes de ter
dado o tiro na boca.
Tivesse ficado calado
e estaria ainda vivo, aqui ou noutro lado.
— OK: não posso dizer
que estivesse melhor
(em relação à sua actual, como hei-de dizer?, situação),
mas também ninguém
me pode dizer a mim que não.

Manuel António Pina

OLHARES


Conheci o pintor Artur Bual numa exposição de quadros seus no S.N.I., coio da propaganda salazarista.

Alguns anos mais tarde, O Helder Pinho levou-nos a visitar na cave-casa-estúdio que o Bual possuía na Amadora, a dado ponto da conversa,  entre latas de atum, azeitonas, queijinhos frescos, pão alentejano, um garrafão de tinto, lembrei-lhe o S.N.I.

Muito calmamente respondeu: «Fomeca, meu caro, muito espaço no estômago».

 Não acrescentou nem mais uma palavra e eu fiquei, parvamente, a olhar.


Mário-Henrique Leiria, meu mestre de gin, e não só, amiúde dizia que «posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Mas isso era o Mário-Henrique Leiria, um louco genial, e não podemos exigir que todos fossem, ou sejam, como ele.

Receio bem que, daqui por uns anos, quase ninguém saiba quem foi , o que por aqui andou a fazer.

Como tantos e tantos outros.

Conheci-o antes do 25 de Abril, por mero acidente liquido no “Expresso Bar”, ali no Largo da Trindade. Uma atracção imediata, um espanto que não mais se esquece. Um excelente contador de histórias rasgadas por um humor colorido, gritante, irresistível, demolidor, corrosivo, mas a desfazer-se em ternura.


Um louco genial, que gargalhava frente à angústia. Era cruel e entendia que a «crueldade é somente um processo quotidiano de exprimir qualquer coisa», ou como disse o O’Neill: «um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No fundo tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer». Aliás como viemos a saber pela leitura de Depoimentos Escritos, um livro lindíssimo, também cruel. Nele se conta a história de uma paixão que teve por uma alemã, Dietlinde de seu nome, «uma ariana pura» e como ansiava ter uma vida calma com fedelhos pendurados nos joelhos, doces natais. A ariana fugiu com outro, que ela considerou ser o amor da sua vida, e para além de o deixar destroçado e exigir o divórcio ainda lhe levou quadros, discos de música de Natal, música russa e brasileira, jazz.


No meio do processo o Mário acaba por se apaixonar, loucamente, pela advogada da mulher, um amor impossível.


Legenda: Artur Bual e Mário-Henrique Leiria

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A PREGUIÇA DAS PALAVRAS


26 de Junho de 1970

Escrevo cada vez com mais dificuldades - numa luta terrível contra a preguiça das palavras.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume IX

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O QUE SE PASSA QUANDO NÃO SE PASSA NADA


De novo na esplanada do café de Perec, espero em vão como sempre, que passe Catherine Deneuve, que vive na praça. Mas, uma vez mais, ela não aparece. Surpreende-me, um pouco mais tarde, ler na revista Lire que Vargas Llosa também vive nessa praça, tem um duplex num edifício do século XVIII: «Neste bairro, sinto-me como em casa. É um bairro muito literário. Umberto Eco também vive na praça. Há quinze anos que espero ver Catherine Deneuve, mas ela nunca aparece.»
Neste momento, aparece Deneuve. Fico mudo de surpresa e pergunto-me se, durante um momento, Deneuve não foi «o que se passa quando não se passa nada».

Enrique Vila-Matas em Diário Solúvel

Legenda: Catherine Deneuve

LIVROS A DESFAZEREM-SE


Reproduzir as capas dos livros da Biblioteca da Casa, foi uma das ideias que se considerou interessante apresentar no Cais do Olhar.

De entre essas capas não poderiam faltar as da Colecção Vampiro.

Principalmente as capas de Cândido Costa Pinto e de Lima de Freitas.

As que gosto mais são as de Cândido Costa Pinto.

Grande parte dos livros da Vampiro herdei-os do meu pai.

Os dias do meu pai em Almoçageme eram passados a ler romances policiais. A esmagadora maioria dos volumes da Colecção Vampiro que por aqui estão, foi ele que os comprou. No intervalo das leituras subia ao Café Adraga, pedia ao João uma sandes mista em pão saloio – não te esqueças que é aparada! – e fazia descer, bem fresca, meia garrafinha de branco Beira-Mar.

Algures, em As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães, escreve Ana Teresa Pereira:

«- O que lias quando eras criança?
- Havia uma estante de policiais em casa. Na biblioteca do meu pai. Ficava nas traseiras da casa e pela janela via-se o jardim. Lembro-me de ir para lá nas tardes de chuva. Escolhia-os pelas capas.»

Olhar as Capas acompanha com um pequeno excerto do livro.

Os livros da Colecção Vampiro li-os há muitos anos.

Para o tal excerto, fui relendo-os.

Com grande espanto, à medida que lhes fui pegando, vi alguns desfazerem-se por completo.

A humidade, os diversos calores, as traças, atacaram-nos implacavelmente, livros que já em si, se exceptuarmos as capas, nunca primaram pela qualidade do papel, da impressão, da encadernação.

São excelentes as capas de Cândido da Costa Pinto, algumas verdadeiras obras de arte, interessantes também as de Lima de Freitas mas, verdadeiramente, a cereja no topo do bolo são as capas de Cândido Costa Pinto que as desenha até ao número 104 da colecção, enquanto que as de Lima de Freitas vão do número 105 até ao número 325.

A partir daqui as capas perdem qualidade, alguns volumes mencionam que as capas são de autoria de A. Pedro e grande parte são de um péssimo gosto, muitas a resvalar para a pornografia pura e dura, com o mero propósito de chamar a atenção com vista à fácil compra. 
Diga-se também que as traduções não primavam pela qualidade. A maior parte seguia a edição brasileira, revistas, em cima do joelho, para português.

A Vampiro contou com alguns tradutores portugueses, lembro-me de Lima de Freitas, António Lopes Ribeiro, Mascarenhas Barreto, Elisa Lopes Ribeiro, Baptista de Carvalho, Fernanda Pinto Rodrigues e Mário-Henrique Leiria, apenas um livro traduzido, o clássico O Imenso Adeus de Raymond Chandeler, nº 101 da Colecção.

A Vampiro seguia o lema que tudo o que viesse à rede era peixe e daí encontramos, na colecção, autores da segunda, terceira e quarta divisão do Romance Policial.

Mas, no fundo dos fundos, o balanço final é positivo.

De uma velha crónica do António Lobo Antunes:

«Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer.
Lembro-me de falar nisso ao meu irmão de alma José Cardoso Pires
- Sabes do que tenho vontade, tu?
esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro ­ Fazer um romance negro.
Recebi de resposta
- Ando a pensar nisso desde que comecei.
Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro:
- Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro?
- Achas que é preciso?

OLHAR AS CAPAS


O Mistério do Ataúde Grego

Ellery Queen
Tradução. Lino Vallandro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 39
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Logo desde o início, o caso Khalkis feriu uma nota lúgubre. Começou com a morte de um ancião mas escusado será dizer que quando Georg Khalkis faleceu, vitimado por uma síncope cardíaca, ninguém – e Ellery Queen menos que qualquer outro  -suspeitou de que essa morte fosse o acorde inicial de uma sinfonia de crime. É mesmo de crer que Ellery Queen só tivesse tido conhecimento da morte de Georg Khalkis quando para o caso lhe chamaram a atenção, isto é, três dias depois dos restos mortais do velho cego haverem sido transportados para o que de início se supôs viria a ser a sua última morada.

É O QUE DIZEM QUANDO ALGUÉM MORRE



Chegamos à entrevista que João Pedro George fez a Luis Pacheco, em Maio de Maio de 2005, no blogue Esplanar, e antologiada em O Crocodilo Que Voa:

Como é que se tem dado aqui neste lar?

Há uns tempos andei com a ideia de fazer um trabalho sobre lares. A má fama dos lares é justificada... e não sabes tu da metade do que se passa aqui... há aqui casos humanos dramáticos, por exemplo, a senhora do quarto aqui ao lado... à noite têm de lhe mudar a fralda... passa horas a berrar “srª empregada, srª empregada...” Ninguém aparece... eu ainda lá fui uma vez... aqui não há campainha de alarme, não há telefone. Também, o que é que isso interessa, no lar de Palmela havia telefone mas tocava-se e não estava lá ninguém... Esse lar de Palmela era o lar nº 1, o melhor do país, segundo a Deco. Era um modelo. O projecto do lar deve ter sido gamado do estrangeiro. Era um lar invulgar, com todas as condições. Mas o ambiente era muito desumano, era uma espécie de aldeia turística. Falo disso no último texto do Isto de Estar Vivo, o “Memorial do Recolhimento”. Era um lar no meio de uma serra, com o ar puríssimo de Palmela, uma construção nova, em arco, sem vizinhança, sem casas à volta... Era muito bonito... Fui para lá logo quando aquilo começou... no início, a fase de promoção, serviam um bacalhau altíssimo, as torradas pareciam as das pastelarias da Baixa, dois andares de torradas, molhadas em manteiga, o café com leite vinha com dois pacotes de açúcar... depois, um dia, começou a aparecer só um pacote... vieram as economias... as torradas passaram a ter só um andar com uma lambidela de margarina... Agora este aqui, do Príncipe Real, já se aproxima mais da generalidade. Por exemplo, as giletes que eles dão aqui algumas já barbearam mortos. Tu não fazes ideia... Isto é um armazém de pré-cadaveres, é uma parada de monstros. Há um gajo que não tem uma perna, anda de cadeira de rodas empurrado por um velhinho de 88 anos, há outro que é cego, tem glaucoma, mais a namorada, que é horrorosa, mas como ele não vê também não faz mal... outro tem alzheimer, o sr. Américo, entra aqui, de boné e pijama, dá uma volta pelo quarto, às vezes vai à casa de banho, sai, não repara em ninguém, não diz nada... há outro que é o sr. Vergílio, anda pelos corredores a rir e a assobiar, são dois fantasmas... Há uma que anda aqui a passear de um lado para o outro, diz “ai, ai, ai”, depois vai bater na outra que está sempre sentada na cama, vai lá mexer... não têm mão nela... com estes gajos não se pode estar a discutir, é comprimido, água para o bucho, não vai um vão dois, fica a dormir dois dias seguintes... Isto agora aqui são os últimos dia do condenado. Aqui a lei é morrer devagar. Está uma a morrer ali, ou já morreu, não sei, estou eu a morrer aqui, está outra a morrer ali... A ver quem morre primeiro… “Já foi”, é o que dizem quando alguém morre. Agora já sei o que vão dizer quando eu morrer. 

terça-feira, 20 de novembro de 2018

UMA DAS MELHORES FORMAS DE ESCREVER


"Nenhuma cidade deve ser tão grande que não possa ser percorrida a pé numa manhã", a frase pertence ao escritor e crítico inglês Cyril Connolly que a escreveu na década de 40, quando a sua Londres contava já com mais de quatro milhões de habitantes e precisava de bem mais do que uma manhã para ser percorrida.
Não sei em quanto tempo se poderá dar uma volta completa a Lisboa, mas o Bairro dos Anjos leva-me pouco menos de duas horas, incluindo becos, travessas e escadinhas e uma pausa para café. Caminhar é umas das melhores formas de escrever, já que as ideias vão atrás dos olhos, tentando ligar as personagens aos locais, o que se mostra ao que está escondido, a realidade à ficção.

Nuno Camarneiro em Diário de Notícias on-line

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

NÃO SERÁ MANHÃ NUNCA


Começamos por uma casa, pelo sentimento uma força em exercício, um poder que vem de há muito tempo, quando essa casa era igual mas era uma herdade, um latifúndio, quando nada faltava - a família, as empregadas na cozinha, o feitor, os campos, a vila ao fundo, e a voz do avô a comandar o mundo. Agora há fotografias no Alentejo em vez de pessoas, e há objectos, cientes que também acabarão sem ninguém, há memórias de quem dorme, ou morreu, mortos que não sabem se a vida foi vida, há os irmãos, um é autista, e a imagem da mãe muito nítida, sempre de costas (alguma vez a vi sem ser de costas para mim?). Nessa altura já não se sabia a que cheira o vento, como não se sabe para onde foi a Maria Adelaide, morta também, foi para Lisboa? A herdade foi tirada ao autista, e a doença (de quem?) é um arquipélago branco nas radiografias dos outros, um arquipélago normal, inocente. Estão todos mortos ou estão todos a sonhar e trocaram de sonhos, como se pudessemos trocar de sonhos. De qualquer forma, sabemos que daqui a nada será manhã - mas aquilo que se disse ainda se ouve lá dentro: (- Não precisa de se casar comigo menino o seu pai nunca casou comigo). E então vamos sabendo que não será manhã nunca.

António Lobo Antunes



Legenda: fotografia de Arthur Rothstein

domingo, 18 de novembro de 2018

CANSAÇO EXTREMO


28 de Novembro de 1949

Cansaço extremo – é uma palavra – mas que significa? É agradável, um leve sobressalto como que de embriaguez, e volto a mim com os dentes cerrados. Mas se um dia não volto a mim?

Cesare Pavese em Ofício de Viver

sábado, 17 de novembro de 2018

SARAMAGUEANDO


«Agora vou lutar contra a pobreza. É a pobreza que dever ser eliminada do mundo. A pobreza não é santa. Tantos séculos para compreender isto.»


Peça de teatro sobre o capitalismo, as chefias, a política, as eleições, a bolsa, as valorizações e desvalorizações dos produtos e das pessoas.

São Francisco de Assis regressa para uma segunda vida e encontra a sua Ordem transformada numa grande e lucrativa empresa.

Legenda: capa de A Segunda Vida de Francisco de Assis publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Frei Bento Domingues.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

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O que se aprende com as crónicas sobre a América com que o Luís Miguel Mira nos tem deliciado.
Necessariamente terão que dar livro!
E eu que saiba que isso não vai acontecer!
Curiosamente, na de hoje, fala-se de «Sixteen Tons» uma canção que deverei ter ouvido pela primeira vez pelos meus 15 anos, portanto há uns bons 58 anos.
A canção fazia parte de um LP da Popular Favourites da Philips e era cantada pelo Frankie Laine, uma voz que o meu pai muito admirava, de que passei também a gostar, ao ponto de, há uns bons trinta anos, numa ida do Miguel a Londres, lhe ter pedido para me trazer um LP de Frankie Laine e acabou por chegar um Duplo LP que faz parte dos tesouros da casa e cuja capa acima se reproduz.

De «Sixteen Tons» ficam aqui algumas versões, a de Frankie Laine incluída. Uma bela voz, diga-se.







PO' MONKEY'S JUKE POINT


Com o fim da escravatura na América muitos dos antigos escravos e seus descendentes  continuaram ligados às suas plantações de origem, quer como trabalhadores rurais mediante a contrapartida de um parco salário (a maior parte do qual “em espécie”),  quer como rendeiros (“sharecroppers”, no original americano), isto é, exploradores de uma pequena porção de terra mediante entrega em pagamento de uma boa parte das suas colheitas ao proprietário rural.

Em qualquer das circunstâncias, o fim da escravatura era ilusório, já que se mantinham os laços de uma total dependência face aos grandes proprietários rurais.

A literatura norte-americana, mas também a de toda a América Latina  (Guimarães Rosa, Lins do Rego, Miguel Angel Asturias, …) ,  mostrou-nos bem como é que o sistema funcionava. Endividados até à medula nos armazéns dos seus patrões, esses trabalhadores apenas em teoria eram livres. Enquanto não saldassem as suas dívidas não podiam abandonar as plantações e a dívida, essa crescia cada  vez mais porque o próprio patrão se encarregava de incentivar o consumo a crédito como forma de manter o trabalhador amarrado, porque o pouco que este retirava da terra era insuficiente para pagar os seus débitos acumulados.

Tal como Merle Travis escreveu numa canção tornada célebre (“Sixteen Tons”), embora relacionada com outra realidade (o trabalho nas minas de carvão do Kentucky), esses trabalhadores rurais do Sul profundo  “owed their souls to the company store”.

Apenas duas alternativas se apresentavam a essa pobre gente dita livre: perpetuar a sua relação de dependência ano após ano ou abandonar as plantações pela calada da noite, sabendo que uma matilha de perseguidores os iriam procurar, quase sempre sob o comando do “sheriff” local.

Para aqueles que teimavam em permanecer o trabalho era árduo, a vida de miséria  e as poucas oportunidades que havia para relaxar e fugir da tensão de uma semana de trabalho eram bem-vindas.

Proibidos de aceder aos locais frequentados pelos brancos devido às leis de segregação “Jim Crow”, os negros criaram os seus próprios locais de diversão chamados “Juke Joints”. De arquitetura muito pobre (barracas, quase sempre…),  eram locais privados de sociabilização fora do controlo dos “brancos”, onde por algumas horas podiam usufruir da boa sensação de uma total liberdade, jogando os seus jogos de azar, bebendo, ouvindo música e dançando à sua   vontade. Eram, também, locais de mobilização para o combate social  e muitas pequenas revoltas e sabotagens  locais que a “História dos brancos” persiste em ignorar nasceram precisamente aí.

 Muitas vezes situados no meio rural e em encruzilhadas de estradas para facilitar o acesso, esses “Juke Joints” tiveram também um papel importantíssimo na difusão dos “Blues” no Mississippi,  porque muitos foram os “blues singers” que, nos anos 20 e 30, a caminho do Norte ou vivendo no Delta do Mississippi, faziam o circuito dos “Juke Joints” em busca de alojamento, alimentação e algumas moedas que pudessem cair dentro do chapéu.

Nos dias de hoje atravessa-se o Mississippi e encontram-se muitos bares ditos “Juke Joints”. São, quase sempre, estabelecimentos urbanos mais recentes que procuram retirar algum proveito do turismo que a rota dos “Blues” continua a proporcionar.


Mas um dos velhos “Juke Joints” rurais que chegou aos nossos dias em melhor estado de conservação (passe a expressão…) é este “Po’ Monkey Juke Joint”, numa saída da Highway 61 perto de Marigold.

Po’ Monkey era a alcunha de William Seaberry, que comprou o estabelecimento no início dos anos 60, recuperou-o e manteve-o em atividade até à data da sua morte, em 2016.
Po’ Monkey era figura proeminente no meio dos “Blues”, célebre pela sua simpatia, bom humor e roupagem extravagante. Podemos encontra-lo como consultor de Martin Scorsese na ficha técnica da sua série televisiva sobre os “Blues”.


No que respeita ao estabelecimento em si, não o pude ver do interior mas o exterior é uma maravilha. Deliciem-se com o humor dos diversos anúncios e proibições inscritas na parede, desde o volume do som ao tipo de música e ao consumo de drogas, não esquecendo o impagável “dress code”!


Saí dali a imaginar a animação que isto não teria tido nos seus tempos áureos. E a confusão também, porque quando se misturam jogo, música, dança e bebida, algo de mal pode sempre acontecer… Que o diga o pobre Robert Johnson, mais tarde chamado “the king of Delta blues”, que morreu envenenado num sítio destes, devido a uma complicação de saias...  É uma história interessante de se contar a que voltarei um dia destes.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Não me sacudam que estou cheio de lágrimas.

Louis Calaferte, citado, numa entrevista, por António Lobo Antunes