Com o fim da escravatura na América muitos dos antigos escravos e seus descendentes continuaram ligados às suas plantações de origem, quer como trabalhadores rurais mediante a contrapartida de um parco salário (a maior parte do qual “em espécie”), quer como rendeiros (“sharecroppers”, no original americano), isto é, exploradores de uma pequena porção de terra mediante entrega em pagamento de uma boa parte das suas colheitas ao proprietário rural.
Em qualquer das circunstâncias, o fim da
escravatura era ilusório, já que se mantinham os laços de uma total dependência
face aos grandes proprietários rurais.
A literatura norte-americana, mas também a
de toda a América Latina (Guimarães Rosa, Lins do Rego, Miguel Angel
Asturias, …) , mostrou-nos bem como é
que o sistema funcionava. Endividados até à medula nos armazéns dos seus
patrões, esses trabalhadores apenas em teoria eram livres. Enquanto não
saldassem as suas dívidas não podiam abandonar as plantações e a dívida, essa
crescia cada vez mais porque o próprio patrão se encarregava de
incentivar o consumo a crédito como forma de manter o trabalhador amarrado,
porque o pouco que este retirava da terra era insuficiente para pagar os seus
débitos acumulados.
Tal como Merle Travis escreveu numa canção
tornada célebre (“Sixteen Tons”), embora relacionada com outra realidade (o
trabalho nas minas de carvão do Kentucky), esses trabalhadores rurais do Sul
profundo “owed their souls to the company store”.
Apenas duas alternativas se apresentavam a
essa pobre gente dita livre: perpetuar a sua relação de dependência ano após
ano ou abandonar as plantações pela calada da noite, sabendo que uma matilha de
perseguidores os iriam procurar, quase sempre sob o comando do “sheriff” local.
Para aqueles que teimavam em permanecer o
trabalho era árduo, a vida de miséria e as poucas oportunidades que havia
para relaxar e fugir da tensão de uma semana de trabalho eram bem-vindas.
Proibidos de aceder aos locais frequentados
pelos brancos devido às leis de segregação “Jim Crow”, os negros criaram os
seus próprios locais de diversão chamados “Juke Joints”. De arquitetura muito
pobre (barracas, quase sempre…), eram locais privados de sociabilização
fora do controlo dos “brancos”, onde por algumas horas podiam usufruir da boa
sensação de uma total liberdade, jogando os seus jogos de azar, bebendo,
ouvindo música e dançando à sua
vontade. Eram, também, locais de mobilização para o combate social
e muitas pequenas revoltas e sabotagens
locais que a “História dos brancos” persiste em ignorar nasceram
precisamente aí.
Muitas vezes situados no meio rural e em
encruzilhadas de estradas para facilitar o acesso, esses “Juke Joints” tiveram
também um papel importantíssimo na difusão dos “Blues” no Mississippi,
porque muitos foram os “blues singers” que, nos anos 20 e 30, a caminho
do Norte ou vivendo no Delta do Mississippi, faziam o circuito dos “Juke
Joints” em busca de alojamento, alimentação e algumas moedas que pudessem cair
dentro do chapéu.
Nos dias de hoje atravessa-se o Mississippi
e encontram-se muitos bares ditos “Juke Joints”. São, quase sempre,
estabelecimentos urbanos mais recentes que procuram retirar algum proveito do
turismo que a rota dos “Blues” continua a proporcionar.
Mas um dos velhos “Juke Joints” rurais que
chegou aos nossos dias em melhor estado de conservação (passe a expressão…) é
este “Po’ Monkey Juke Joint”, numa saída da Highway 61 perto de Marigold.
Po’ Monkey era a alcunha de William
Seaberry, que comprou o estabelecimento no início dos anos 60, recuperou-o e
manteve-o em atividade até à data da sua morte, em 2016.
Po’ Monkey era figura proeminente no meio
dos “Blues”, célebre pela sua simpatia, bom humor e roupagem extravagante.
Podemos encontra-lo como consultor de Martin Scorsese na ficha técnica da sua
série televisiva sobre os “Blues”.
No que respeita ao estabelecimento em si,
não o pude ver do interior mas o exterior é uma maravilha. Deliciem-se com o
humor dos diversos anúncios e proibições inscritas na parede, desde o volume do
som ao tipo de música e ao consumo de drogas, não esquecendo o impagável “dress
code”!
Saí dali a imaginar a animação que isto não
teria tido nos seus tempos áureos. E a confusão também, porque quando se
misturam jogo, música, dança e bebida, algo de mal pode sempre acontecer… Que o
diga o pobre Robert Johnson, mais tarde chamado “the king of Delta blues”, que
morreu envenenado num sítio destes, devido a uma complicação de saias...
É uma história interessante de se contar a que voltarei um dia destes.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira.
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