“Lord the 61 Highway
It’s the longest road I know
She run from New York City
Run right by my baby’s door”
(Mississippi Fred
McDowell)
A Highway 61 é também
conhecida por “Highway of the Blues” por duas razões: porque atravessa a região
do chamado Delta do Mississippi, que foi onde se afirma que um Blues
rural mais genuíno nasceu e se desenvolveu em toda a sua plenitude; e
porque foi por essa estrada acima, muitas vezes a pé e à boleia e tocando
nos diversos Juke Joints que lhes surgissem no caminho, que
partiram os velhos bluesmen à procura de melhores condições de vida do
que aquela que tinham, no Sul em geral, e nas plantações onde muitos
trabalhavam, em particular.
Alguns não quiseram
ou não puderam partir. Deixaram-se ficar no trabalho duro das suas plantações,
arando a terra atrás de mulas, colhendo o algodão ou, com alguma sorte e com a
progressiva mecanização da agricultura, guiando tratores durante décadas e
cantando e tocando nas vizinhanças, nos tempos livres, para arrecadar alguns
tostões suplementares. Até serem descobertos ou redescobertos muitos anos mais
tarde e levados em ombros para Nova York, como sucedeu com Mississippi John
Hurt, do qual um dia vos falarei.
O destino desta
peregrinação variou ao longo dos anos, em função do arrojo, da
ambição e da ligação à terra natal que
cada um desses músicos manifestava: uns mantiveram-se no Delta e ficaram
por Clarksdale ou nas suas proximidades, fazendo dessa terra o mais
importante lugar do Blues no Mississippi nos anos 20 e nos anos 30;
outros subiram até Memphis e instalaram-se em Beale Street; outros ainda, mais
arrojados, seguiram mais para Norte até St. Louis, que foi também uma
importante cidade do Blues; outros, finalmente e mais tarde, subiram
ainda mais longe até Chicago, que nos anos 40 e 50 foi a capital do
blues nos Estados Unidos. Os blues desenvolveram-se aí de tal
maneira que deram origem a um “sub-género”, os chamados “Chicago Blues”, mais
eletrificados, com nomes como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Sonny Boy
Williamson, todos eles oriundos do Mississippi.
Mas não se pense que
a vida dessa gente era fácil nas cidades onde se instalavam. Tinham de
trabalhar no duro nas fábricas, como todos os outros, até surgir uma
oportunidade de serem valorizados através da sua música. Muddy Waters, por
exemplo, um dos maiores intérpretes do Blues moderno, partiu da sua
plantação de Stovall para Chicago em 1943, andou durante anos a guiar
camiões durante o dia e a tocar à noite onde calhava, e só no final dessa
década começou a ter algum sucesso, após ter assinado pela Chess Records. Mas
por cada um que obtinha sucesso, muitos outros se mantiveram na obscuridade.
Em 1927 uma
verdadeira tragédia económica e social abateu-se sobre o Mississippi, fazendo
com que a “Highway 61” não fosse apenas o caminho dos bluesmen, mas de
uma boa parte da população do Delta, expulsa à força das suas terras. Após
semanas de chuva intensa, vários diques de água cederam em Abril desse ano e o
rio Mississippi transbordou, provocando uma cheia gigantesca que ainda hoje é
considerada a maior tragédia do género em toda a história dos Estados Unidos.
Apenas no Verão desse ano a situação começou a normalizar. Cidades ficaram
inundadas, plantações foram devastadas e estima-se que metade da população
negra do Delta do Mississippi foi obrigada a emigrar para o Norte, à procura de
condições de subsistência na grande indústria de Detroit e nos grandes
matadouros de Chicago.
Tanto o Blues
como a Folk têm uma grande capacidade para captar e integrar nas suas
“letras” os acontecimentos e as histórias do dia-a-dia, pelo que não é
estranhar que, pouco tempo depois, muitas tenham sido as músicas que se
debruçaram sobre este desastre ecológico. A mais conhecida das quais é capaz de
ser “High Water Everywhere”, que Charley Patton compôs no ano seguinte.
Mais de 70 anos depois, Bob Dylan - Mr.
Zimmerman again! – rendeu-lhe uma bela homenagem, com “High Water (for Charley
Patton), que faz parte do seu álbum “Love and Theft”, de 2001.
A tragédia da cheia
não atingiu apenas o Estado do Mississippi, mas também muitos outros estados
limítrofes. A fuga das populações foi massiva e estima-se que, só no Estado do
Mississippi, um quarto de toda a população negra tenha emigrado para o Norte. E
com ela muitos bluesmen. Quase sempre pela “Highway 61”…
No “Delta Blues
Museum” de Clarksdale encontrei uma frase de um tal Mike Rewe, estudioso do
“Chicago Blues”, que achei curiosa e que resume toda a história:
“While segregation created the blues, migration
spread the message”
Quer isto dizer que se esta tragédia afetou em muito a situação do
Mississippi e dos músicos do Delta, não afetou tanto os blues a
nível nacional. Tanto mais que a indústria discográfica estava em verdadeira
fase de expansão e que toda essa população negra deslocada para o Norte,
impossibilitada de escutar “ao vivo” a música que no seu dia-a-dia sempre se
tinham habituado a ouvir, vai tornar-se a população-alvo dos chamados “Race
Records”.
As gravações de Blues
não começaram nessa altura, mas muitos anos antes. Embora se trate de um
instrumental que pouco tem a ver com o género vocal de que estou a falar,
consta que a primeira gravação de uma música a conter blues no seu
título foi “Memphis Blues”, que W.C. Hardy gravou para a Victor em 1914 (Mr.
Zimmerman, que nestas coisas não perde pitada, far-lhe-á também uma referência
no seu “Suck Inside the Mobile with the Memphis Blues Again…). Essas gravações
tiveram uma difusão relativamente restrita, tanto mais que as condições de
reprodução não estavam ao alcance de todas as bolsas.
Mas a tecnologia
evoluiu, as condições e a qualidade de gravação e reprodução melhoraram
significativamente com a chegada dos aparelhos Victrola e dos novos 78
rpm mais leves e duráveis, tornando a música gravada mais acessível.
Neste novo contexto,
muitas foram as companhias discográficas (Paramount, Victor, Okeh, …) que
decidiram gravar a “música dos negros”, para uma minoria branca que já se
mostrava interessada, mas sobretudo para uma imensa maioria negra. São esses
discos interpretados por negros, muitas vezes gravados por negros e
maioritariamente destinados à população negra que vieram a ser designados por
“Race Records”. Esse “boom” discográfico sofreu um forte abalo com o “crash” de
1929, mas algumas editoras sobreviveram e a situação voltou a melhorar durante
a década de 30, quando o New Deal de Roosevelt deu uma oportunidade de melhores
condições de vida a uma boa parte da população americana.
Um outro acontecimento
que muito ajudou à difusão do Blues nesses tempos, e ao sucesso
comercial dos discos, foi o início das emissões radiofónicas. Algumas dessas
Rádios, na década de 40, eram geridas por negros e destinadas,
maioritariamente, à população negra. Foi o caso da WROX, de Clarksdale, e da
WDIA de Memphis, onde se iniciou B.B. King.
Vou terminar
regressando à Highway 61, para vos dizer que é curioso que uma estrada tão
importante para a história do blues tenha tido, na época, tão
poucas canções a imortaliza-la… Só a partir da década de 50 começam a
surgir algumas músicas que lhe são inteiramente dedicadas. Nenhuma delas fará
parte da Grande História, mas talvez as de Mississippi Fred McDowell e de James
“Son” Thomas (“61 Highway Blue”) sejam as mais interessantes. Embora o primeiro
devesse estar perdido de bêbado quando imaginou a estrada a passar em New York
City, coisa que nunca aconteceu…!
Fontes:
Não sendo eu um
historiador do “Blues”, todo o conhecimento que tenho é em segunda mão. Assim
sendo, para a preparação desta minha viagem foi importante a leitura ou
releitura das seguintes obras: “Alan Lomax – The Land Where the Blues Began,
1993”; “Roger Stolle – Hidden Story of Mississippi Blues, 2011”; “Robert
Santelli e Outros – American Roots Music, 2001”; “Howard Mandell – The
Illustrated Encyclopedia of Jazz and Blues, 2005”, de que existe tradução
portuguesa nas Edições Afrontamento.
Importante foi
também, como não podia deixar de ser, a revisão dos 7 episódios de Martin
“Scorsese Presents the Blues”.
A tudo isto acresceu
o que aprendi e registei em todos os museus que visitei e nos lugares
históricos por onde passei.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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