Começamos por uma
casa, pelo sentimento uma força em exercício, um poder que vem de há muito
tempo, quando essa casa era igual mas era uma herdade, um latifúndio, quando
nada faltava - a família, as empregadas na cozinha, o feitor, os campos, a vila
ao fundo, e a voz do avô a comandar o mundo. Agora há fotografias no Alentejo
em vez de pessoas, e há objectos, cientes que também acabarão sem ninguém, há
memórias de quem dorme, ou morreu, mortos que não sabem se a vida foi vida, há
os irmãos, um é autista, e a imagem da mãe muito nítida, sempre de costas
(alguma vez a vi sem ser de costas para mim?). Nessa altura já não se sabia a
que cheira o vento, como não se sabe para onde foi a Maria Adelaide, morta
também, foi para Lisboa? A herdade foi tirada ao autista, e a doença (de quem?)
é um arquipélago branco nas radiografias dos outros, um arquipélago normal,
inocente. Estão todos mortos ou estão todos a sonhar e trocaram de sonhos, como
se pudessemos trocar de sonhos. De qualquer forma, sabemos que daqui a nada
será manhã - mas aquilo que se disse ainda se ouve lá dentro: (- Não precisa de
se casar comigo menino o seu pai nunca casou comigo). E então vamos sabendo que não será manhã nunca.
António Lobo Antunes
Legenda: fotografia de Arthur Rothstein
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