Mr. Zimmerman desde muito cedo nos
habituou às suas traquinices.
A mais recente
das quais aconteceu no ano passado, quando se silenciou durante vários dias à
espera que a Academia Sueca lhe pedisse desculpa por o ter incomodado com a
atribuição de um Prémio Nobel.
Esta de que
agora vos falo terá sido outra, embora muito mais antiga…
Goste-se ou não
dele – eu aprecio a Obra, em geral, mas não o Homem - a memória de Mr.
Zimmerman tem muita força e um amante de música jamais poderá atravessar a
Highway 61 sem se lembrar do seu sexto álbum, “Highway 61 Revisited”, de 1965.
Mas porquê ter
evocado a Highway 61 numa altura em que, tendo acabado de espetar vários
pregos no caixão da Folk mais
tradicional, a sua música se afastava já claramente noutras direções…?
Alguns dizem que
é uma homenagem ao “Blues”, mas de verdadeiro “Blues” não consigo ver nada de
significativo neste disco, a não ser o título de duas músicas (“Tomstone Blues”
e “Just Like Tom Thumb’s Blues”), que com o “Blues” de que vos falo pouco ou
nada têm a ver….
Vou à estante à
procura de uma pequena pista que me ilumine, e também não vejo nada. Encontro
coisas como “Folk eletrificado”, “puro Rock ‘n’ Roll” e até o insuspeito
Jacques Vassal, no seu livro “Folksong”, diz que o disco é “Pop Moderno” de uma
ponta à outra…!
No que respeita
à estrada em si, o disco tem, de facto, uma música que se chama “Highway 61
Revisited”, cuja letra é daquelas que exigem curso universitário e
pós-graduação, para finalmente podermos chegar à conclusão que tanto pode
significar uma coisa, como o seu inverso… Mas que muita coisa por lá se
passa na “Highway 61”, lá isso é verdade… Até a encenação de uma III Guerra
Mundial, com bancadas para a assistência e tudo… Deve ser
a isso que “The Illustrated Encyclopedia of Rock” chama “a sustained level of
extraordinarily lyricism”…
Talvez que tudo
não passe de uma “private joke”, como que a dizer que se os velhos “blues”
puderam ser “eletrificados” e sobreviveram ainda com mais força, porque razão
não o poderia ser também a Folk Music…
Não sei...
Talvez que Mr.
Zimmerman se tenha dado ao trabalho de se explicar numas das poucas entrevistas
que vez o favor de conceder, mas em boa verdade não sei…
Não sou nem
quero passar por ser um grande “especialista” de Mr. Zimmerman.
Mas que, segundo
ele próprio conta, a atração que sentia pela Highway 61 sempre foi muito
antiga, isso sei muito bem…
No primeiro
volume das suas “Memórias” (estamos há 14 anos à espera do segundo, outra
traquinice, certamente…!) Mr. Zimmermam conta que a Highway 61 lhe estava no
sangue e era o seu verdadeiro lugar no Universo. Uma estrada que passava na
cidade onde tinha nascido, perto do lugar onde vivia e da qual se servia para
ir a todo o lado, quanto mais não seja em sonhos de aventuras “on the road”, na
companhia de Sal Paradise e Dean Moriarty.
Mas, bem lá no
fundo, o que ele ansiava era por liberdade e Robert Sheldon, biógrafo de Mr.
Zimmerman e uma das maiores sumidades da Folk americana acerta na mouche quando
afirma:
“If
you have been born in a place like Duluth and if you were raised in a very,
very parochial town like Hibbing, Minnesota, you had to start making your
escape plans. Very early Highway 61 became to him, I think, a symbol of
freedom, a symbol of mouvement, a symbol of Independence, and a chance to get
away from a life he didn’t want in that town”
(in Documentário
da série “Tales of Rock ‘n’ Rol” sobre “Highway 61 Revisited”)
Talvez então que
as coisas sejam bem mais simples e que tudo não passe de uma mera fantasia da
minha parte, ansioso por encontrar conexões em tudo e mais alguma coisa. Talvez
que Robert, o “motard” com ar de “rock” e uma “t-shirt” da Triumph na capa do
disco, estivesse só com nostalgia da estrada quando lhe deu esse nome…
O que é curioso
é que os anseios de libertação através da estrada do jovem Robert nos finais
dos anos 50, tal como os de tantos outros tantos adolescentes na América,
sobretudo após a publicação do livro do Jack Kerouac, são exatamente os mesmos
que sentiram muitos dos velhos “bluesmen” e “jazzmen” do Sul profundo, 40 anos
antes, embora por motivos diferentes, como vos contarei um destes dias.
Mas já que, a
propósito da Highway 61, falei tanto de liberdade e evoquei Jack Kerouac e os
sonhos da “beat generation” e,
posteriormente, do movimento “Hippie”
que o seguiram, talvez venha a talhe de foice recordar que foi também
muito perto dessa estrada que, simbolicamente, tudo se acabou….
“Easy Rider” é,
como se sabe, um marco da “Contracultura” americana dos anos 60/70 e um dos
filmes que deu maior impulso ao surgimento de um novo tipo de cinema na
América, aquilo a que Peter Hiskind chamou a “Nova Hollywood”.
E é em Krotz Springs, no Louisiana, a muito
poucas milhas da “Highway 61”, que acaba “Easy Ryder”, naquela pavorosa
cena final em que os dois “motards” interpretados por Peter Fonda e Dennis
Hopper são mortos a tiro de caçadeira por um duo de inofensivos agricultores
locais, “just to watch them die”, como na canção do Johny Cash. E depois
a câmara sobe até ao céu deixando ver os corpos deitados e a mota em chamas e
aparece um rio que poderia ser o Mississippi, mas não é, enquanto Roger McGuin
arranca lentamente com a “Ballad” que acompanha o genérico final:
“The
river flows, it flows to the sea
Wherever
that river goes, that’s where I want to be”
Uns dias antes,
pouco antes de ter sido ele próprio morto à paulada pela calada da noite, o
jovem advogado interpretado por Jack Niicholson, que bebia whiskey pelo gargalo
em memória de D.H. Lawrence, já lhes tinha explicado, em conversa, porque razão
eles iriam morrer:
“- Sabem, este costumava ser um país formidável. Não
compreendo o que se passa…
- Acobardaram-se todos, é o que é. Nem num hotel de
2º…. num motel de 2ª conseguimos entrar. Acham que os vamos degolar ou coisa
assim…Têm medo.
- Não têm medo de vocês, têm medo do que vocês
representam.
- Só representamos quem precisa de cortar o cabelo…
- Não. O que vocês representam é a liberdade.
- E que mal tem a liberdade…? Ela é o mais importante.
- Ela é o mais importante, sim senhor, mas falar dela
e vivê-la são duas coisas diferentes. Quer dizer, custa muito ser-se livre
quando se é comprado e vendido no mercado. Mas nunca lhes digam que não são
livres senão vão matar e mutilar só para provar que são. Vão falar convosco e
falar convosco e falar convosco sobre liberdade individual. Mas quando veem um
individuo livre, sentem medo…
- Mas isso não os põe a fugir assustados…
- Não. Torna-os perigosos…”
Se nenhum outro
mérito tivesse, “Easy Rider” ficará sempre, para mim, como o filme premonitório
do fim de um Sonho, o final de uma Utopia...Quase a acabar o filme já Peter
Fonda tinha desabafado, com ar dolorido: “estragámos tudo…”.
O filme foi
lançado em Julho de 1969. Em Agosto desse ano, Woodstock ficou célebre mas já
não correu muito bem. Altamont, em Dezembro, foi um desastre… No ano anterior
tinham sido assassinados Martin Luther King Jr e Robert Kennedy. A América tão
depressa não voltaria a ser a mesma…
Quanto à Highway
61, ela é, juntamente com a Route 66, uma das estradas mais míticas de todos os
Estados Unidos da América.
Acompanha de
perto o rio Mississippi e, no seu trajeto atual (já foi maior no passado…),
rasga o país de Norte a Sul ao longo de perto de 2.300 Km, ligando as cidades
de Wyoming, no Minnesota e New Orleans, na Louisiana, passando perto, ou não
muito longe, de cidades tão importantes como Detroit, Chicago, St. Louis,
Nashville e Memphis.
Fiz apenas cerca
de 600 km nesta estrada entre Memphis e Batton Rouge, já às portas de New
Orleans.
Mas, em boa
verdade, não foi a “Old Highway 61” que eu fiz, mas sim a nova “Interstate 61…
Como quase
sempre sucedeu nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século passado,
os tempos modernos trouxeram consigo um crescente tráfego rodoviário e a velha
estrada foi destruída e substituída por uma nova, com várias faixas de rodagem.
Na região do
Mississippi onde passei a velha 61 está abandonada, destruída e nalguns locais
positivamente esventrada, como vi em várias fotografias, sendo muito pouco
transitável.
Na Route 66
ainda tinha tido o prazer de me sentir na pele de um Tom Joad, rodando na velha
estrada durante algumas centenas de quilómetros.
Mas aqui tal não
seria possível…
Decidi, por
isso, não ir ver os destroços e deixar a estrada à minha imaginação.
E avancei para o
Sul em direção ao mar, como faz o rio na canção do Roger McGuin.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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