segunda-feira, 26 de novembro de 2018

HIGHWAY 61 REVISITED


Mr. Zimmerman desde muito cedo nos habituou às suas traquinices.

A mais recente das quais aconteceu no ano passado, quando se silenciou durante vários dias à espera que a Academia Sueca lhe pedisse desculpa por o ter incomodado com a atribuição de um Prémio Nobel.

Esta de que agora vos falo terá sido outra, embora muito mais antiga…
Goste-se ou não dele – eu aprecio a Obra, em geral, mas não o Homem - a memória de Mr. Zimmerman tem muita força e um amante de música jamais poderá atravessar a Highway 61 sem se lembrar do seu sexto álbum, “Highway 61 Revisited”, de 1965.

Mas porquê ter evocado a Highway 61 numa altura em que, tendo acabado de espetar vários  pregos no caixão da Folk  mais tradicional,  a sua música se  afastava já claramente noutras direções…?

Alguns dizem que é uma homenagem ao “Blues”, mas de verdadeiro “Blues” não consigo ver nada de significativo neste disco, a não ser o título de duas músicas (“Tomstone Blues” e “Just Like Tom Thumb’s Blues”), que com o “Blues” de que vos falo pouco ou nada têm a ver….

Vou à estante à procura de uma pequena pista que me ilumine, e também não vejo nada. Encontro coisas como “Folk eletrificado”, “puro Rock ‘n’ Roll” e até o insuspeito Jacques Vassal, no seu livro “Folksong”, diz que o disco é “Pop Moderno” de uma ponta à outra…!

No que respeita à estrada em si, o disco tem, de facto, uma música que se chama “Highway 61 Revisited”, cuja letra é daquelas que exigem curso universitário e pós-graduação, para finalmente podermos chegar à conclusão que tanto pode significar uma coisa, como o seu inverso…  Mas que muita coisa por lá se passa na “Highway 61”, lá isso é verdade… Até a encenação de uma III Guerra Mundial, com bancadas para a assistência e tudo… Deve ser a isso que “The Illustrated Encyclopedia of Rock” chama “a sustained level of extraordinarily lyricism”…
Talvez que tudo não passe de uma “private joke”, como que a dizer que se os velhos “blues” puderam ser “eletrificados” e sobreviveram ainda com mais força, porque razão não o poderia ser também a Folk Music…

Não sei...


Talvez que Mr. Zimmerman se tenha dado ao trabalho de se explicar numas das poucas entrevistas que vez o favor de conceder, mas em boa verdade não sei…

Não sou nem quero passar por ser um grande “especialista” de Mr. Zimmerman.
Mas que, segundo ele próprio conta,  a atração que sentia pela Highway 61 sempre foi muito antiga, isso sei muito bem…

No primeiro volume das suas “Memórias” (estamos há 14 anos à espera do segundo, outra traquinice, certamente…!) Mr. Zimmermam conta que a Highway 61 lhe estava no sangue e era o seu verdadeiro lugar no Universo. Uma estrada que passava na cidade onde tinha nascido, perto do lugar onde vivia e da qual se servia para ir a todo o lado, quanto mais não seja em sonhos de aventuras “on the road”, na companhia de Sal Paradise e Dean Moriarty.

Mas, bem lá no fundo, o que ele ansiava era por liberdade e Robert Sheldon, biógrafo de Mr. Zimmerman e uma das maiores sumidades da Folk americana acerta na mouche quando afirma:

“If you have been born in a place like Duluth and if you were raised in a very, very parochial town like Hibbing, Minnesota, you had to start making your escape plans. Very early Highway 61 became to him, I think, a symbol of freedom, a symbol of mouvement, a symbol of Independence, and a chance to get away from a life he didn’t want in that town”
(in Documentário da série “Tales of Rock ‘n’ Rol” sobre “Highway 61 Revisited”)

Talvez então que as coisas sejam bem mais simples e que tudo não passe de uma mera fantasia da minha parte, ansioso por encontrar conexões em tudo e mais alguma coisa. Talvez que Robert, o “motard” com ar de “rock” e uma “t-shirt” da Triumph na capa do disco, estivesse só com nostalgia da estrada quando lhe deu esse nome…


O que é curioso é que os anseios de libertação através da estrada do jovem Robert nos finais dos anos 50, tal como os de tantos outros tantos adolescentes na América, sobretudo após a publicação do livro do Jack Kerouac, são exatamente os mesmos que sentiram muitos dos velhos “bluesmen” e “jazzmen” do Sul profundo, 40 anos antes, embora por motivos diferentes, como vos contarei um destes dias.

Mas já que, a propósito da Highway 61, falei tanto de liberdade e evoquei Jack Kerouac e os sonhos da  “beat  generation” e, posteriormente, do movimento “Hippie”  que o seguiram, talvez venha a talhe de foice recordar que foi também   muito perto dessa estrada que, simbolicamente, tudo se acabou….
“Easy Rider” é, como se sabe, um marco da “Contracultura” americana dos anos 60/70 e um dos filmes que deu maior impulso ao surgimento de um novo tipo de cinema na América, aquilo a que Peter Hiskind chamou a “Nova Hollywood”.
 E é em Krotz Springs, no Louisiana, a muito poucas milhas da “Highway 61”, que acaba  “Easy Ryder”, naquela pavorosa cena final em que os dois “motards” interpretados por Peter Fonda e Dennis Hopper são mortos a tiro de caçadeira por um duo de inofensivos agricultores locais, “just to watch them die”, como na canção do  Johny Cash. E depois a câmara sobe até ao céu deixando ver os corpos deitados e a mota em chamas e aparece um rio que poderia ser o Mississippi, mas não é, enquanto Roger McGuin arranca lentamente com a “Ballad” que acompanha o genérico final:
“The river flows, it flows to the sea
Wherever that river goes, that’s where I want to be”

Uns dias antes, pouco antes de ter sido ele próprio morto à paulada pela calada da noite, o jovem advogado interpretado por Jack Niicholson, que bebia whiskey pelo gargalo em memória de D.H. Lawrence, já lhes tinha explicado, em conversa, porque razão eles iriam morrer:
“- Sabem, este costumava ser um país formidável. Não compreendo o que se passa…
- Acobardaram-se todos, é o que é. Nem num hotel de 2º…. num motel de 2ª conseguimos entrar. Acham que os vamos degolar ou coisa assim…Têm medo.
- Não têm medo de vocês, têm medo do que vocês representam.
- Só representamos quem precisa de cortar o cabelo…
- Não. O que vocês representam é a liberdade.
- E que mal tem a liberdade…? Ela é o mais importante.
- Ela é o mais importante, sim senhor, mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. Quer dizer, custa muito ser-se livre quando se é comprado e vendido no mercado. Mas nunca lhes digam que não são livres senão vão matar e mutilar só para provar que são. Vão falar convosco e falar convosco e falar convosco sobre liberdade individual. Mas quando veem um individuo livre, sentem medo…
- Mas isso não os põe a fugir assustados…
- Não. Torna-os perigosos…”  

Se nenhum outro mérito tivesse, “Easy Rider” ficará sempre, para mim, como o filme premonitório do fim de um Sonho, o final de uma Utopia...Quase a acabar o filme já Peter Fonda tinha desabafado, com ar dolorido: “estragámos tudo…”.
O filme foi lançado em Julho de 1969. Em Agosto desse ano, Woodstock ficou célebre mas já não correu muito bem. Altamont, em Dezembro, foi um desastre… No ano anterior tinham sido assassinados Martin Luther King Jr e Robert Kennedy. A América tão depressa não voltaria a ser a mesma…


Quanto à Highway 61, ela é, juntamente com a Route 66, uma das estradas mais míticas de todos os Estados Unidos da América.

Acompanha de perto o rio Mississippi e, no seu trajeto atual (já foi maior no passado…), rasga o país de Norte a Sul ao longo de perto de 2.300 Km, ligando as cidades de Wyoming, no Minnesota e New Orleans, na Louisiana, passando perto, ou não muito longe, de cidades tão importantes como Detroit, Chicago, St. Louis, Nashville e Memphis.

Fiz apenas cerca de 600 km nesta estrada entre Memphis e Batton Rouge, já às portas de New Orleans.

Mas, em boa verdade, não foi a “Old Highway 61” que eu fiz, mas sim a nova “Interstate 61…

Como quase sempre sucedeu nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século passado, os tempos modernos trouxeram consigo um crescente tráfego rodoviário e a velha estrada foi destruída e substituída por uma nova, com várias faixas de rodagem.

Na região do Mississippi onde passei a velha 61 está abandonada, destruída e nalguns locais positivamente esventrada, como vi em várias fotografias, sendo muito pouco transitável.

Na Route 66 ainda tinha tido o prazer de me sentir na pele de um Tom Joad, rodando na velha estrada durante algumas centenas de quilómetros.
Mas aqui tal não seria possível…

Decidi, por isso, não ir ver os destroços e deixar a estrada à minha imaginação.
E avancei para o Sul em direção ao mar, como faz o rio na canção do Roger McGuin.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira 

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