«Vivi, olhei, senti,
Que faz aí o ler, Lendo fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo
portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler de outra
maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe
for própria, há quem leve a vida a ler sem nunca ter conseguido ir mais alem da
leitura, fica pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras
postas a atravessar a correntes de um rio, se estão ali é para que possamos
chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser quê,
A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada
pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e a pena sua a
margem a que terá de chegar.»
José Saramago em A Caverna
A Caverna é um livro
anti-capitalismo que, ao mesmo tempo lembra, louva, um mundo de trabalho que está à beira de completa extinção.
Uma família de
oleiros vê a profissão tradicional ser destruída pelas novas tecnologias, pelos
novos gostos.
«Privatize-se tudo,
privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça
e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for
diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto
privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração
deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a
salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a
todos.»
(José Saramago, Cadernos
de Lanzarote, Volume III).
Duas passagens de entrevistas em que José Saramago tenta
explicar A Caverna:
Uma:
«Eu não acredito na
bondade da natureza humana. Para que um pobre bom se converta num rico mau, só
é preciso muito dinheiro. Não santifico o pobre. Mas na Caverna não pergunto
nem me interessa quem são os donos do centro comercial. Do ponto de vista literário,
não me interessa. A mim, o que me interessa é que o centro comercial simboliza
um sistema cruel. Fabrica excluídos sem piedade alguma.»
Outra:
«É uma história de perdedores cuja única vitória é que não se entregam ao triunfador. É a revolta possível, mas sem, ela não poderá haver outra. A derrota definitiva seria a submissão, e mesmo assim não devemos esquecer que as gerações se sucedem, mas não se repetem. Assim como de insubmissos podem nascer submissos, também dos que se submeteram poderão nascer os que haverão de se revoltar. Não diria exactamente sobre a globalização, mas sobre essa fatalidade económica que faz com que venha um momento em que já não somos necessários.»
Sou suspeito na
matéria: volto com agrado a todos os livros de Saramago. E em cada vez que lhes
pego encontro novas coisas e isso é tão gratificante.
«A véspera é o que trazemos a cada dia que vamos vivendo, a vida é
acarretar vésperas como quem acarreta pedras, quando já não podemos com a carga
acabou-se a transportação. O último dia é o único a que não se pode chamar
véspera.»
Ou:
«Felizmente, existem os livros. Podemos esquecê-los numa prateleira ou
num baú, deixá-los ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves,
podemos não lhes pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas
eles não se importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que
nada do que têm dentro se perca, o momento que sempre chega, aquele dia em que
nos perguntamos, Onde estará aquele livro que ensinava a cozer os barros, e o
livro finalmente convocado, aparece, está aqui nas mãos de marta enquanto o pai
e o livro, finalmente convocado, aparece, está aqui nas mãos de Marta.»
Legenda: capa de A
Caverna publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da
autoria de Eduardo Lourenço.
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