terça-feira, 6 de novembro de 2018

CONTIGO NÃO HÁ DISTÂNCIA


«Não consigo lembrar-me como é que era antes de te conhecer. Eu era sempre assim? Lembro-me de mim perdido. Quanto a isso nenhuma dúvida. Deambulando. De nada em nada. De alucinada em alucinada. Permanecendo, por vezes, apenas o tempo suficiente para compreender que o desnorte delas era mais pronunciado do que o meu. Pelo menos é assim que elas me aparecem. Mas não me lembro de estar assim nervoso como estou agora; assim em frangalhos. Observava-as muito de longe, muito à distância: pedradas, ensaiando banhos de esponja nos seus lavatórios; aparando bolas pretas de haxixe com lâminas de barbear; movendo-se como rainhas em câmara lenta. Depois, transformavam-se em raparigas em quintais de já lá vai muito tempo, desfazendo-se em risinhos e aninhando as longas pernas debaixo do aconchego dos seus corpos: a maneira como se afundavam sobre os seus macios calcanhares e depois meneavam muito o cabelo como cavalos sacudindo as caudas.
Mas contigo não há distância. Todos os movimentos que fazes, sinto-os como se viajasse na tua pele; as tuas espreitadelas da janela, como se tu estivesses completamente sozinha e sonhando num outro tempo qualquer. De nada me serve dar aos braços a dizer adeus. Agora, está tudo ao contrário

Sam Shepard em  Atravessando o Paraíso.

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