«Não consigo lembrar-me como é que era antes de te
conhecer. Eu era sempre assim? Lembro-me de mim perdido. Quanto a isso nenhuma
dúvida. Deambulando. De nada em nada. De alucinada em alucinada. Permanecendo,
por vezes, apenas o tempo suficiente para compreender que o desnorte delas era
mais pronunciado do que o meu. Pelo menos é assim que elas me aparecem. Mas não
me lembro de estar assim nervoso como estou agora; assim em frangalhos. Observava-as
muito de longe, muito à distância: pedradas, ensaiando banhos de esponja nos
seus lavatórios; aparando bolas pretas de haxixe com lâminas de barbear;
movendo-se como rainhas em câmara lenta. Depois, transformavam-se em raparigas
em quintais de já lá vai muito tempo, desfazendo-se em risinhos e aninhando as
longas pernas debaixo do aconchego dos seus corpos: a maneira como se afundavam
sobre os seus macios calcanhares e depois meneavam muito o cabelo como cavalos
sacudindo as caudas.
Mas contigo não há distância. Todos os
movimentos que fazes, sinto-os como se viajasse na tua pele; as tuas
espreitadelas da janela, como se tu estivesses completamente sozinha e sonhando
num outro tempo qualquer. De nada me serve dar aos braços a dizer adeus. Agora,
está tudo ao contrário.»
Sam Shepard em Atravessando o Paraíso.
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