sexta-feira, 23 de novembro de 2018

OLHARES


Conheci o pintor Artur Bual numa exposição de quadros seus no S.N.I., coio da propaganda salazarista.

Alguns anos mais tarde, O Helder Pinho levou-nos a visitar na cave-casa-estúdio que o Bual possuía na Amadora, a dado ponto da conversa,  entre latas de atum, azeitonas, queijinhos frescos, pão alentejano, um garrafão de tinto, lembrei-lhe o S.N.I.

Muito calmamente respondeu: «Fomeca, meu caro, muito espaço no estômago».

 Não acrescentou nem mais uma palavra e eu fiquei, parvamente, a olhar.


Mário-Henrique Leiria, meu mestre de gin, e não só, amiúde dizia que «posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Mas isso era o Mário-Henrique Leiria, um louco genial, e não podemos exigir que todos fossem, ou sejam, como ele.

Receio bem que, daqui por uns anos, quase ninguém saiba quem foi , o que por aqui andou a fazer.

Como tantos e tantos outros.

Conheci-o antes do 25 de Abril, por mero acidente liquido no “Expresso Bar”, ali no Largo da Trindade. Uma atracção imediata, um espanto que não mais se esquece. Um excelente contador de histórias rasgadas por um humor colorido, gritante, irresistível, demolidor, corrosivo, mas a desfazer-se em ternura.


Um louco genial, que gargalhava frente à angústia. Era cruel e entendia que a «crueldade é somente um processo quotidiano de exprimir qualquer coisa», ou como disse o O’Neill: «um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No fundo tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer». Aliás como viemos a saber pela leitura de Depoimentos Escritos, um livro lindíssimo, também cruel. Nele se conta a história de uma paixão que teve por uma alemã, Dietlinde de seu nome, «uma ariana pura» e como ansiava ter uma vida calma com fedelhos pendurados nos joelhos, doces natais. A ariana fugiu com outro, que ela considerou ser o amor da sua vida, e para além de o deixar destroçado e exigir o divórcio ainda lhe levou quadros, discos de música de Natal, música russa e brasileira, jazz.


No meio do processo o Mário acaba por se apaixonar, loucamente, pela advogada da mulher, um amor impossível.


Legenda: Artur Bual e Mário-Henrique Leiria

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