quinta-feira, 15 de novembro de 2018

SARAMAGUEANDO



«COMENDADOR
Convidaste-me a jantar e aqui me tens. Eu prometi que viria, agora é a tua vez. Cumpre a tua palavra, recebe-me à tua mesa e abre-me a tua consciência.
DON GIOVANNI
Leporello foi fazer compras à vila e ainda não regressou. Se quiseres esperar que ele volte e nos prepare o jantar, senta-te por aí, mas tem cuidado com a cadeira, pesas demasiado. Ou então passa por cá outro dia.
COMENDADOR
O dia é hoje.
DON GIOVANNI
Como queiras. Mas senta-te, por favor, não gosto de ver ao meu lado pessoas mais altas do que eu.
COMENDADOR
Não posso sentar-me.
DON GIOVANNI
Porquê?
COMENDADOR
Uma estátua tem de ficar para sempre como a fizeram. A mim fizeram-me em pé, por isso não me posso sentar. É uma questão de articulações.
DON GIOVANNI
Vais estar em pé por toda a eternidade? Isso cansará muito, suponho.
COMENDADOR
Não sei. A eternidade, para mim, só agora é que começou.
DON GIOVANNI
E como foi que vieste até aqui? Não deve ter sido fácil, com essas pernas rígidas, tesas. Quero dizer, sem articulações.
COMENDADOR
Trouxe-me pelos ares o meu espírito. Não havia outra maneira.
DON GIOVANNI
E onde está ele agora?
COMENDADOR
Ficou lá fora, à espera.
DON GIOVANNI
Se queres, manda-o entrar, não faças cerimónia, onde cabemos dois, cabemos três. E mesmo quatro, se contarmos com Leporello.
COMENDADOR
Não te incomodes, o espírito esperará o que for preciso, cedo e tarde são expressões sem sentido para ele.
DON GIOVANNI
Curioso. E vai ficar lá fora até que acabemos de comer?
COMENDADOR
Os mortos não comem, os mortos são comidos.
DON GIOVANNI
Não é preciso estar morto para saber isso. Em todo o caso, tu encontras-te a salvo, os vermes são bichos delicados, respeitam o bronze. Mas, agora reparo, se por te faltarem as articulações não te podes sentar, comer também não poderás. Para comer é preciso dar ao queixo.»

José Saramago em Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido

Partindo da ópera de Mozart Don Giovanni ou O Dissoluto Punido em que Don Giovanni é condenado aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, José Saramago reanalisa o mito: será Don Giovanni culpado? E o Comendador, e Dona Ana, e Dona Elvira, e Don Octávio? Serão um modelo de virtudes? Onde está a culpa? Onde está a virtude? Onde está a hipocrisia?

José Saramago:

«Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de Joelhos, rendido, submetido, é esta».


«Como te dizia há um momento, agora estou a pensar assim, mas amanhã, no momento da minha morte, tudo poderia acontecer, inclusive que negue tudo o que acabo de afirmar. Mas isso não significa, nem significará nunca que tenha razão então. Estive a ouvir antes Don Giovanni de Mozart e tem oito minutos de música que, para mim, nunca será superada. Refiro-me ao último acto, quando aparece a Don Giovani a estátua do comendador. O comendador exige-lhe que se arrependa, senão leva-o para o inferno. Para mim Don Giovanni é uma ópera melhor do que Parsifal, com toda a sua mística, é a grande ópera e a grande música. Don Giovanni, que é um canalha, um enganador, um tipo desprezível, diz que não, que não se arrepende, e isto é uma lição de dignidade: eu errei, mas o que significa dizer que me arrependo? Não posso apagar todos os males que causei durante a minha vida, as vítimas estão aí, dizer que me arrependo é demasiado fácil.»

Legenda: capa de Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Alexandre Delgado.

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