sexta-feira, 13 de setembro de 2019

CACHIMBO


Perdi-o. E gostei tanto desse cisne negro, companheiro Leal dos bons e maus momentos. Não foi a primeira vez que perdi um cachimbo, mas a última é sempre mais dolorosa.

Perdi, não sei onde.


Dir-se-á que o facto não interessa a ninguém. De acordo.


Todavia, noite alta, tento relembrar os lugares onde o podia ter deixado. No transporte? No café? No jornal onde deixei o meu escrito numa correria para o emprego? No emprego? Em que andar de que reunião? Ou foi depois, ao almoço de peixe grelhado naquela tasca (que o pretende ser), ou quando dei um salto ao correio? Teria sido na sala de montagem onde estive a trabalhar, cheia de filmes, de coladeiras, entradas, saídas? No Conservatório, à noite? Talvez na Secretaria onde tive de preencher um papel selado? Na leitaria do bairro Alto onde bebi uma coca entre duas aulas? No cinema da meia-noite, para não perder enfim o filme tantas vezes perdido?


Tanta gente, tantos lugares; e eu em todos imagino o meu gesto com o cachimbo na mão. Imagino e vejo. E vejo o cachimbo, abandonado. Como se em todos os lados tivesse deixado o meu cisne negro, companheiro leal.


Ninguém tem nada com isto, bem sei.


Todavia, agora, noite alta, cismo quantos e diferentes lugares e espaços frequentei num dia banal, frequentei, estive, vivi, existi, para estar, existir. Odisseia em ponto pequeno. Sobre isso James Joyce escreveu um grande romance. Em vez de Lisboa, Dublin. Tanto faz.


Ele, um grande romance. Eu, esta pobre nota; na origem, porém, a mesma violenta vertigem da vida inominável.

Jorge Listopad de Secos &Molhados em Fruta Tocada por Falta de Jardineiro

3 comentários:

Seve disse...

Será o próximo que irei (re)ler; custou-me 80$00 em 17.01.1983 na Livraria Bertrand do Chiado, tem um prefácio de Mário Mesquita e é das edições Numar.
Poucos meses antes de morrer vi o Jorge Listopad, já bastante debilitado, numa "casa de saúde" (lar) ali para os lados da Junqueira junto à antiga FIL.
A vida...

Seve disse...

Claro que estava a falar do livro "Secos e molhados" do Jorge Listopad.

Sammy, o paquete disse...

Tem textos muito interessantes. Alguns datados, outros que dá gosto recordar.
Jorge Listopad é um daqueles casos que nos deixam felizes porque desembarcam, ficam por aqui e ajudam a enriquecer a nossa cultura.