20 Anos na Dom Quixote
António Lobo
Antunes
Capa: Henrique
Cayatte
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 1999
Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico
decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para serem lidos no
sentido em que usualmente se chama ler : a única forma
parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do
mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com
outros tenistas, que estes jogavam ténis enquanto Borg jogava outra coisa.
Aquilo a que por comodidade chamei romances, como poderia ter chamado poemas,
visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A
pessoa tem de renunciar à sua própria chave
aquela que todos temos para abrir a vida, a
nossa e a alheia
e utilizar a chave que o texto lhe oferece. De outra
maneira torna-se incompreensível, dado que as palavras são apenas signos de
sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de
superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira
aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao
negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender
isto aperceber-se-à apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos
livros: o país , a rela homem-mulher, o problema da identidade e da
procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se
calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico,
mas que nada têm a ver com o meu trabalho. O mais que, em geral, recebemos da
vida, é um conhecimento dela que chega bem tarde. Por isso não existem nas
minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente ,
símbolos materiais de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é
nossa. É preciso que se abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às
longas elipses, ao assombrado vaivém das ondas que, a pouco e pouco, os levarão
ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à renovação do
espírito. É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a
página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido
que não possui e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse choque,
pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os meus romances não
estivessem nas livrarias ao lado dos outros , mas afastados e numa caixa
hermética, para não contagiarem as narrativas alheias ou os
leitores desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e encontrar uma
verdade. Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas
suas claridades e nas suas sombras , que se irão achando os significados do
romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos instintos de claridade e
às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem
e fechado o livro
convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance
ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
a fim de poder ter assento no meio dos demónios e dos anjos da terra. Outra abordagem de que escrevo é
limita-se a ser
uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida na solidão e na alegria . Isto não se torna complicado se tomarem a obra como a tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos. Alguns
quase todos
os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo.
e fechado o livro
convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance
ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
a fim de poder ter assento no meio dos demónios e dos anjos da terra. Outra abordagem de que escrevo é
limita-se a ser
uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida na solidão e na alegria . Isto não se torna complicado se tomarem a obra como a tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos. Alguns
quase todos
os mal entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo.
2 comentários:
Agora penso que poderei ter percebido que li os primeiros três livros do ALA absolutamente fascinads e engolido mas que depois destes três nunca mais consegui passar em nenhum outro da pág. 26.
Saberá António Lobo Antunes da existência de leitores seus que não conseguem ultrapassar as primeiras dezenas de páginas dos seus últimos romances?
Sabe com toda a certeza!
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