quinta-feira, 12 de setembro de 2019

E COMO LHE IMPORTA VIVER


O escritor não é ser passivo ante o mundo que o cerca. Apaixona‑se sempre. A diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um medíocre, é que naquele nunca a paixão se faz retórica. Recusa padrões, fórmulas, os caminhos fáceis do naturalismo, mesmo que surjam, como agora, sob disfarces de vanguarda. Escolhe, representa, desencadeia a percepção e a imaginação do leitor: entrega‑lhe um instrumento, um estímulo, para penetrar na realidade e interpretá‑la também por sua vez. Para que cada leitor, outro homem biológico e social, sensitivo e diferenciado, recrie a seu modo, por vias algumas vezes insuspeitadas, a nova realidade que o escritor teceu. Todos eles, individual e colectivamente, participam na criação constante de um corpo vivo, projectado em milhentas imagens que se focam e desfocam ao sabor de quem lê e reimagina, segundo o tono que os habita. Também sob a coacção do grupo social, familiar ou político de que participam; segundo também o momento, o exacto momento psicológico em que o escritor cria e o público lê ou medita. Mas voltemos à minha experiência espontânea, logo depois premeditada. Muitos chamavam recolha, talvez impropriamente, a esta busca de contacto humano; outros apoucaram o processo, impropriamente também. Na verdade, não se recolhem os materiais da vida; vivem‑se. Ou inventam‑se. Mas escolhem‑se as vivências ou as invenções quando um escritor sabe para que vive. E como lhe importa viver.

Alves Redol, Breve História de um Romance em Avieiros

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