O escritor não é ser passivo ante o mundo que o cerca.
Apaixona‑se sempre. A diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um
medíocre, é que naquele nunca a paixão se faz retórica. Recusa padrões,
fórmulas, os caminhos fáceis do naturalismo, mesmo que surjam, como agora, sob
disfarces de vanguarda. Escolhe, representa, desencadeia a percepção e a
imaginação do leitor: entrega‑lhe um instrumento, um estímulo, para penetrar na
realidade e interpretá‑la também por sua vez. Para que cada leitor, outro homem
biológico e social, sensitivo e diferenciado, recrie a seu modo, por vias
algumas vezes insuspeitadas, a nova realidade que o escritor teceu. Todos eles,
individual e colectivamente, participam na criação constante de um corpo vivo,
projectado em milhentas imagens que se focam e desfocam ao sabor de quem lê e
reimagina, segundo o tono que os habita. Também sob a coacção do grupo social,
familiar ou político de que participam; segundo também o momento, o exacto
momento psicológico em que o escritor cria e o público lê ou medita. Mas
voltemos à minha experiência espontânea, logo depois premeditada. Muitos
chamavam recolha, talvez impropriamente, a esta busca de contacto humano;
outros apoucaram o processo, impropriamente também. Na verdade, não se recolhem
os materiais da vida; vivem‑se. Ou inventam‑se. Mas escolhem‑se as vivências ou
as invenções quando um escritor sabe para que vive. E como lhe importa viver.
Alves Redol, Breve
História de um Romance em Avieiros
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