quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

TODOS ESTIVEMOS COMPROMETIDOS


Todos os princípios são difíceis, e os assuntos delicados ainda mais.

Quando os assuntos têm que ser tratados com pinças, há que inventar um abrir de prosa.

Lembrei-me de algo que Vitorino Magalhães Godinho disse em Outubro de 1974, citado por José- Augusto França nas suas Memórias:

«Num tão longo regime totalitário, quer se queira quer não, todos estiveram comprometidos. Salvo raras excepções em casos de sacrifício merecedores de respeito e de rendida homenagem, a grande maioria teve de acomodar-se. Viver…»

Volto a lembrar o que, aqui,  já deixei escrito:

 Ano de 1967, o Helder Pinho levou-nos a visitar a cave-casa-estúdio que o Bual possuía na Amadora, a dado ponto da conversa,  entre latas de atum, azeitonas, queijinhos frescos, pão alentejano, um garrafão de tinto, lembrei ao Artur Bual, a colaboração com o S.N.I.

 Muito calmamente respondeu: «Fomeca, meu caro, muito espaço no estômago».

 Não acrescentou nem mais uma palavra e eu fiquei, parvamente, a olhar.

 Como pude ser tão idiota, tão ordinário, tão estúpido, tão repugnante, tão mania de ser chico-esperto?

 Tinha o exemplo do senhor meu pai, e alguma vez o Artur Bual merecia que lhe perguntasse o que perguntei?

 E não há nenhuns 20 anos que desculpem uma imbecilidade daquelas!

 Mário-Henrique Leiria, meu mestre de gin, e não só, amiúde dizia que «posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Mas isso era o Mário-Henrique Leiria, um louco genial, e não podemos exigir que todos fossem, ou sejam, como ele.

 José Gomes Ferreira entristecia-se quando se lembrava que os seus compadres e vizinhos, Bernardo Marques, sua mulher Ofélia Marques, para sobreviverem, aceitavam fazer capas e ilustrações para as publicações do S.N.I.

O meu pai foi funcionário do S.N.I. para a parte gráfica das suas publicações.

Sempre que saia uma qualquer das publicações do S.N.I., livros, revistas, catálogos, etc., levava um exemplar para casa. Isto durante anos a fio. Tudo se foi acumulando e começou a faltar espaço para acondicionar outros livros.

 Naquele tempo andavam homens e mulheres pelas ruas a comprar jornais, garrafas, outras velharias. Mais ou menos uma vez por mês, alguém ia lá a casa perguntar se havia algo para vender.

 Um dia, para arranjar o tal espaço para livros que começava a faltar, o meu pai decidiu  vender ao quilo as publicações do S.N.I.

 A minha costela anti-regime rejubilou e até ajudei a fazer os molhos e a atar cordas.

 Nesse monte estavam os muitos números da Panorama e também, entre muitos outros, Férias com Salazar, da jornalista francesa Christine Garnier com fotografias do pide Rosa Casaco.

Ao tempo, rumores-cor-de-rosa, dão a jornalista francesa como uma paixão assolapada pelo Botas de Santa Comba, e vice-versa, ao ponto de se ter divorciado.

 Pelos anos 80, comprei o livro editado por Fernando Pereira, mas sem as fotografias do pide Casaco, o que faz alguma diferença.

 Há uns anos, comprei, na Feira da Ladra, 4 exemplares da Panorama ao preço de 2,50 euros cada exemplar.

 Dessa pilhagem anti-S.N.I. restaram 29 volumes do “Notícias de Portugal” devidamente encadernados em carneira porque o SNI, ao fim de cada ano, enviava esses volumes para a Presidência da República, para o Conselho de Ministros, para todas as entidades gradas do regime.

 Outra história para contar.

 Legenda: no topo, capa de Bernardo Marques para a Panorama nº 8, Abril de 1942. A outra capa é da autoria de Manuel Ribeiro de Pavia para a Panorama nº 27 de 1946, sem indicação do respectivo mês.

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