Stoner
John Williams
Posfácio: John
McGahern
Tradução: Tânia Ganho
Capa: Ideias Com Peso
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2021
Havia uma doçura à sua volta e uma languidez apoderou-se do seu corpo.
A sensação da sua própria identidade inundou-o com uma força inesperada e
sentiu o poder dela. Era ele próprio e soube o que tinha sido na vida.
Virou a cabeça. A mesinha de cabeceira tinha uma pilha de livros em que
ele não tocava há muito. Deixou a mão deslizar sobre eles um instante;
espantou-se com a magreza dos dedos, a complexidade das articulações quando os
fletia. Sentiu a força neles e deixou-os tirar um livro do caos que ia em cima
da mesa. Era o seu próprio livro o que ele buscava, e quando a mão o agarrou,
Stoner sorriu ao ver a familiar capa vermelha, há muito desbotada e coçada.
Pouco lhe importava que o livro tivesse caído no esquecimento e não
servisse para nada; e a questão sobre se alguma vez tivera valor pareceu-lhe
quase trivial. Não tinha a ilusão de que se encontraria a si próprio naquelas
páginas, nas palavras esbatidas, e no entanto sabia que uma pequena parte de
si, que ele não podia negar, estava efetivamente ali, e ali ficaria para
sempre.
Abriu o livro e, ao fazê-lo, ele deixou de ser seu. Deixou os dedos
folhearem-no e sentiu um formigueiro na pele, como se aquelas páginas estivessem
vivas. O formigueiro começou nas pontas dos dedos e percorreu-lhe a carne e os
ossos; estava minuciosamente ciente dele e esperou até se espalhar pelo corpo
todo, até o conter, até o antigo entusiasmo, que era uma espécie de pavor, o
fixar no lugar onde jazia. O sol, entrando pela janela, incidiu na página e ele
não conseguiu ver o que estava escrito. Os dedos perderam as forças e o livro
que eles seguravam deslizou devagar, e depois mais depressa, sobre o corpo
imóvel, e caiu no silêncio do quarto.
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