sábado, 30 de abril de 2022

OLHAR AS CAPAS


Stoner

John Williams

Posfácio: John McGahern

Tradução: Tânia Ganho

Capa: Ideias Com Peso

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2021

Havia uma doçura à sua volta e uma languidez apoderou-se do seu corpo. A sensação da sua própria identidade inundou-o com uma força inesperada e sentiu o poder dela. Era ele próprio e soube o que tinha sido na vida.

Virou a cabeça. A mesinha de cabeceira tinha uma pilha de livros em que ele não tocava há muito. Deixou a mão deslizar sobre eles um instante; espantou-se com a magreza dos dedos, a complexidade das articulações quando os fletia. Sentiu a força neles e deixou-os tirar um livro do caos que ia em cima da mesa. Era o seu próprio livro o que ele buscava, e quando a mão o agarrou, Stoner sorriu ao ver a familiar capa vermelha, há muito desbotada e coçada.

Pouco lhe importava que o livro tivesse caído no esquecimento e não servisse para nada; e a questão sobre se alguma vez tivera valor pareceu-lhe quase trivial. Não tinha a ilusão de que se encontraria a si próprio naquelas páginas, nas palavras esbatidas, e no entanto sabia que uma pequena parte de si, que ele não podia negar, estava efetivamente ali, e ali ficaria para sempre.

Abriu o livro e, ao fazê-lo, ele deixou de ser seu. Deixou os dedos folhearem-no e sentiu um formigueiro na pele, como se aquelas páginas estivessem vivas. O formigueiro começou nas pontas dos dedos e percorreu-lhe a carne e os ossos; estava minuciosamente ciente dele e esperou até se espalhar pelo corpo todo, até o conter, até o antigo entusiasmo, que era uma espécie de pavor, o fixar no lugar onde jazia. O sol, entrando pela janela, incidiu na página e ele não conseguiu ver o que estava escrito. Os dedos perderam as forças e o livro que eles seguravam deslizou devagar, e depois mais depressa, sobre o corpo imóvel, e caiu no silêncio do quarto.

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