domingo, 17 de abril de 2022

PETITE FLEUR


O meu Querido Pai nunca me pôs um livro na mão, nunca me recomendou um filme, nunca me evocou uma só música.

Os seus interesses eram outros e, esses sim, não se cansava de os partilhar comigo e com os meus irmãos.

Muito pequenino eu já sabia distinguir uma “chicuelina” de uma “verónica” ou de uma “meia-verónica”. De tenra idade já sabia de Manolete e até do nome desse malvado “Miura” que o matou em plena Praça de Toiros de Linares, naquela fatídica tarde de 28 de Agosto de 1947. E se não fui ao cemitério de Córdoba homenagear a sua memória foi por ser então demasiado novo para acompanhar os meus pais nessas suas viagens de inspiração taurina.

Adolescente, já tinha eu ido várias vezes ao “Pereira d’Alfama”, ao “Ginjal”, na outra-banda, ao “Porto de Abrigo” ali para as bandas do Cais do Sodré e a tantos outros que me ficaram na memória, mas que já não consigo identificar nem localizar. Isto, claro está, para já não falar dos “restaurantes de Família”, aqueles a que se ia aos Domingos e nos “dias especiais”, como era o caso de um ou outro aniversário, da Páscoa e do Dia de Ano Novo. Porque o prazer dos convívios em Família e com os Amigos foi uma das principais lições que o meu Velho Pai me deixou para a Vida.   

Mas não só da “boa vida” foram as lições que recebi do meu Velhote.

Sempre o vi trabalhar muito, até ao dia em que morreu com um ataque cardíaco, aos 67 anos, após um excelente almoço de Domingo de Páscoa no restaurante da então Praça de Toiros de Cascais. E tenho a certeza que na manhã desse mesmo dia não deixou de se levantar cedo para dar uma saltada ao seu Escritório, como fazia, invariavelmente, durante todos os dias da semana.

 Por isso mesmo, posso afirmar que o meu Velho Pai me incutiu uma cultura de brio profissional que me orgulho de ter mantido durante toda a minha vida.  

Agradeço ao meu Pai todas estas belas lições de vida, cuja importância transcende, em muito, a da mera “coisa livresca”. 

Voltando às cenas da “boa vida”, era em nome da Família que eu, até certa idade, tinha de acompanhar o meu Pai e a minha Mãe a almoçar e a lanchar fora aos Domingos, quando às vezes até me apetecia muito mais ficar em casa a fazer outras coisas…

Muitas vezes nesses Domingos, sobretudo nos bons dias de Primavera e de Verão, íamos desaguar à Tala, ali para as bandas de Sintra, onde o Trancoso, o melhor amigo do meu Pai, tinha uma magnífica moradia.

Almoçava-se sardinhas assadas ou carnes grelhadas no meio do pinhal do Trancoso, num espaço que tinha uma grande mesa redonda de pedra, rodeada por um banco circular também de pedra.

Terminados esses longos almoços, os dois casais passavam ao salão onde iria decorrer um não menos prolongado jogo de canastra.

E eu…?

Bem, eu escolhia uma pinha tão redonda e compacta quanto possível e ia para a entrada da moradia do Trancoso jogar à bola. A entrada tinha uma rampa de um nível razoável entre o portão da moradia e o portão branco da garagem onde o Trancoso guardava o seu precioso Lancia Flávia, modelo especial, como ele nunca se cansava de me explicar.

Essa rampa era ladeada por dois pequenos muros de pedra, um de cada lado. E eu lá passava as minhas belas tardes, ora para baixo ora para cima, com os dois portões, o da moradia e o da garagem, a fazerem de baliza. Mas a coisa não era assim tão simples, porque para os golos serem válidos a pinha não podia ir rasteirinha… Eu tinha de a fazer tabelar no muro de forma a apanhá-la mais à frente e meter-lhe o pé de modo a conseguir que ela levantasse voo a uma altura que me desse alguma satisfação. Só assim o golo era considerado válido…

Por cima da garagem a casa tinha um terraço enorme e era no salão que dava para esse terraço que os dois casais jogavam à canastra, sem que ninguém se preocupasse com aquilo que o puto andava lá por baixo a fazer. Lixou-se o Trancoso, que só muito mais tarde ficou a perceber por que razão o belo portão da sua garagem, pintadinho de branco, lhe começou a aparecer sem alguns bocados de tinta…   

Eu é que de vez em quando intervalava e subia ao salão do jogo, talvez porque me desse alguma sede e tivesse esperança que a bondosa Senhora Medina, esposa do Trancoso, me desse um suminho de qualquer coisa…

E então deparava com os quatro à mesa, o meu pai com um charuto numa mão e um copo de conhaque (imagino eu…) na outra, numa sala cheia de fumo onde se ouvia uma músiquinha de fundo. Eu não me lembro de ter alguma vez visto o meu Velho Pai cantar o que quer que fosse, mas foi assim, nessas circunstâncias, que uma vez o apanhei a assobiar uma música que fixei bem, mas que só muito mais tarde consegui identificar, porque também só muito mais fiquei a saber quem era Sidney Bechet.

E é assim que ainda hoje me dá prazer recordar o meu Velhote: na companhia dos amigos,  recostado na cadeira, camisa branca aberta no pescoço, charuto numa mão e copo na outra, a assobiar “Petite Fleur”…      

Texto de Luís Miguel Mira

 

1 comentário:

Sammy, o paquete disse...

Sidney Bechet esteve em Lisboa, no Teatro Monumental, em Novembro de 1955.
Luís Pinheiro de Almeida, em tempos idos, encontrou na Hemeroteca de Lisboa um recorte do «Diário Popular» que está colocado no blogue «Ié-Ié»:
« Os amadores da música de jazz tiveram ontem no Teatro Monumental uma sessão em cheio durante a qual o virtuosismo do famoso clarinetista Sydney Bechet, acompanhado pela magnífica orquestra de André Reweliotty, arrancou em cada interpretação uma verdadeira tempestade de aplausos num ambiente de entusiasmo delirante. A arrojada iniciativa de Vasco Morgado obteve assim êxito invulgar, bastando referir que os trinta números do programa como aqueles que em "extra" Bechet e o conjunto interpretaram na sessão de ontem, foram aplaudidos não apenas no final mas em diversas passagens. E um número houve que electrizou a plateia - "Halie Halie Alleluyah" - que o público acompanhou, marcando o ritmo com palmas ("Diário Popular", 29 de Novembro de 1955). O jornal não diz se "Petite Fleur" foi tocada...»