quinta-feira, 9 de abril de 2020

OLHAR AS CAPAS


A Tragédia da Rua das Flores

Eça de Queiroz
Fixação do texto e notas de João Medina e A. Campos Matos
Moraes Editores, Lisboa, Março de 1980

Genoveva, com efeito, ao anoitecer, tinha mandado a Dâmaso este bilhete:
«Meu querido, perdoa; eu estava nervosa, não sabia o que dizia hoje; peço-te que venhas, não tenho feito senão chorar.»
E Dâmaso, exaltado, chegara a galope. Genoveva, acalmando a sua exaltação da manhã, tinha refletido na inconveniência de uma cena com Dâmaso; no fim, aquele imbecil é que tinha o dinheiro; fossem quais fossem os seus sentimentos ou as suas resoluções, era necessário não O escandalizar; se a sua paixão, o seu interesse, o reclamassem, poderia depois expulsá-lo, mas, até lá, convinha seduzi-lo, estonteá-lo, vergá-lo, e, nota a nota, espremerlhe os últimos sucos de generosidade. Fez uma toilette um pouco provocante e, «armada» como ela disse, esperou o bicho.
Apenas ele entrou, esbaforido, estendeu-lhe as duas mãos, por um gesto cheio de humildade amorosa, dizendo:
— Perdoa. Estava nervosa, hoje.
Mas ficou surpreendida, vendo que Dâmaso não desenrugava a testa; conteve a sua cólera; murmurou, pondo-lhe as mãos nos ombros:
— Mas que posso fazer eu mais? Toda a mulher tem os seus nervos. Foi um momento de arrebatamento.
Dâmaso, com um aspeto carrancudo, resmungava:
— Foi de mais, foi de mais! Puseste-me fora. Eu cá sou pão, pão, queijo, queijo; dessas cenas não gosto. Não gosto, acabou-se.
Ela afastou-se efez-lhe uma cortesia.
— Bem — disse muito friamente. — Demo-nos um aperto de mão e acabou-se. As nossas relações findaram. - Seremos apenas dois bons amigos — e afetando uma voz nervosa, comovida. — Está frio, não?
Dâmaso devorava-a com o olho sensual e rompendo:
 — Tu não tens paixão por mim, Genoveva!
Ela sorriu tristemente e, erguendo os olhos como para invocar o testemunho do céu, seu confidente:
— Não tenho paixão por ele! — e irritada:
— Por quem me toma? Que mulher pensa que eu sou? Se não tenho paixão por si, mentiria. Bem, bem, meu amigo, não falemos mais nisso. Acabou-se. Que vai hoje em São Carlos? Tinha-se sentado numa atitude que dava às suas formas um relevo delicioso.
Ele veio cair no sofá, junto dela, quase sobre os seus pés. — Que me magoa! — disse ela muito doloridamente. — Foi sem querer! — e pôs-se mais à beira do sofá. Tomou-lhe a mão, entre as suas, gorduchas. — Mas diz que tens paixão por mim. Ela endireitou-se e, prendendo-lhe o pescoço, com uma voz cálida de que ele sentia o hálito amoroso:
— E porque estou em Lisboa? Porquê? Imaginas que não tenho, em Paris, relações, amigos,  - que dão tudo, tudo, dinheiro, honra, vida, para estarem agora comigo, sobre um sofá, nesta posição? Porque estou eu em Lisboa? — E pondo na voz um acento intensamente amoroso: — por ti! — disse-lhe baixo. E beijou-lhe então a orelha. Dâmaso encolheu-se, num arrepio de gozo, abraçamdo-a; balbuciava:
— Juras? Juras?
— Juro, meu bichano! — E atraía-o, envolvia-o, enlouquecia-o, beijando, com carícias que o abrasavam e palavras que o enfatuava: — Gosto tanto de ti, deste bichaninho gordo; fazes-me tão doida! Ah, mostro, tu bem o sabes, por isso abusas. Dize, dize que gostas da tua Genovevazinha. Dize. Mas dize-lhoe bem: dize-lhe ao ouvido; dize-lhe na boca...
E Dâmaso arfava, soprava: sentindo fogo no sangue. 

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