A Tragédia da Rua das Flores
Eça de
Queiroz
Fixação do
texto e notas de João Medina e A. Campos Matos
Moraes
Editores, Lisboa, Março de 1980
Genoveva, com efeito, ao anoitecer,
tinha mandado a Dâmaso este bilhete:
«Meu querido, perdoa; eu estava nervosa,
não sabia o que dizia hoje; peço-te que venhas, não tenho feito senão chorar.»
E Dâmaso, exaltado, chegara a galope.
Genoveva, acalmando a sua exaltação da manhã, tinha refletido na inconveniência
de uma cena com Dâmaso; no fim, aquele imbecil é que tinha o dinheiro; fossem
quais fossem os seus sentimentos ou as suas resoluções, era necessário não O
escandalizar; se a sua paixão, o seu interesse, o reclamassem, poderia depois
expulsá-lo, mas, até lá, convinha seduzi-lo, estonteá-lo, vergá-lo, e, nota a
nota, espremerlhe os últimos sucos de generosidade. Fez uma toilette um pouco
provocante e, «armada» como ela disse, esperou o bicho.
Apenas ele entrou, esbaforido,
estendeu-lhe as duas mãos, por um gesto cheio de humildade amorosa, dizendo:
— Perdoa. Estava nervosa, hoje.
Mas ficou surpreendida, vendo que Dâmaso
não desenrugava a testa; conteve a sua cólera; murmurou, pondo-lhe as mãos nos
ombros:
— Mas que posso fazer eu mais? Toda a
mulher tem os seus nervos. Foi um momento de arrebatamento.
Dâmaso, com um aspeto carrancudo,
resmungava:
— Foi de mais, foi de mais! Puseste-me
fora. Eu cá sou pão, pão, queijo, queijo; dessas cenas não gosto. Não gosto,
acabou-se.
Ela afastou-se efez-lhe uma cortesia.
— Bem — disse muito friamente. —
Demo-nos um aperto de mão e acabou-se. As nossas relações findaram. - Seremos
apenas dois bons amigos — e afetando uma voz nervosa, comovida. — Está frio,
não?
Dâmaso devorava-a com o olho sensual e
rompendo:
—
Tu não tens paixão por mim, Genoveva!
Ela sorriu tristemente e, erguendo os
olhos como para invocar o testemunho do céu, seu confidente:
— Não tenho paixão por ele! — e
irritada:
— Por quem me toma? Que mulher pensa que
eu sou? Se não tenho paixão por si, mentiria. Bem, bem, meu amigo, não falemos
mais nisso. Acabou-se. Que vai hoje em São Carlos? Tinha-se sentado numa
atitude que dava às suas formas um relevo delicioso.
Ele veio cair no sofá, junto dela, quase
sobre os seus pés. — Que me magoa! — disse ela muito doloridamente. — Foi sem
querer! — e pôs-se mais à beira do sofá. Tomou-lhe a mão, entre as suas,
gorduchas. — Mas diz que tens paixão por mim. Ela endireitou-se e,
prendendo-lhe o pescoço, com uma voz cálida de que ele sentia o hálito amoroso:
— E porque estou em Lisboa? Porquê?
Imaginas que não tenho, em Paris, relações, amigos, - que dão tudo, tudo, dinheiro, honra, vida,
para estarem agora comigo, sobre um sofá, nesta posição? Porque estou eu em
Lisboa? — E pondo na voz um acento intensamente amoroso: — por ti! — disse-lhe
baixo. E beijou-lhe então a orelha. Dâmaso encolheu-se, num arrepio de gozo,
abraçamdo-a; balbuciava:
— Juras? Juras?
— Juro, meu bichano! — E atraía-o,
envolvia-o, enlouquecia-o, beijando, com carícias que o abrasavam e palavras
que o enfatuava: — Gosto tanto de ti, deste bichaninho gordo; fazes-me tão
doida! Ah, mostro, tu bem o sabes, por isso abusas. Dize, dize que gostas da
tua Genovevazinha. Dize. Mas dize-lhoe bem: dize-lhe ao ouvido; dize-lhe na
boca...
E Dâmaso arfava, soprava: sentindo fogo
no sangue.
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