sexta-feira, 3 de abril de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


As horas em que não sabemos uns dos outros: família, amigos…

O acabar de cada dia é o testemunho de uma profunda e amarga nostalgia.

Há que pontapear as quebras de ânimo, a angústia do guarda-redes, também do pontapeador, no momento do penalty.

Na casa silenciosa lembrei-me de Karen Blixen, do seu livro que deu origem a um filme de Sydney Pollack.

As paisagens africanas do Quénia, as longas panorâmicas, a liberdade livre dos largos espaços.

A última vez que vi o filme numa sala escura, e Out of Africa é daqueles filmes que não suporta o formato televisivo, foi na tarde de 22 de Março de 2006, com a respectiva folha assinada pelo Manuel Cintra Ferreira, que tinha a quase certeza que Pollack poderia ter feito um grande filme em vez de, apenas, um filme bonito.

Quando voltarei à Cinemateca?

«I had a farm in Africa at the foot of the Ngong Mountains.»

Lá pelo meio, Robert Redford, no safari, a lavar o cabelo a Meryl Street, aquele diálogo quando o criado Ndwetti fala do voo que Karen Blixen fizera com Denys:

« — Hoje subiram muito alto. Não vos conseguíamos ver, só ouvíamos o aeroplano zumbir como uma abelha.


Concordei que andáramos a voar muito alto.


- Viram Deus? - perguntou ele.


- Não, Ndwetti – respondi eu. Não vimos Deus.


- Ah, então é porque não subiram o suficiente. Mas digam-me lá: acham que conseguem subir o suficiente no seu aeroplano para ver Deus? - perguntou ele dirigindo-se a Denys.


- Na realidade, não sei - foi a resposta.


- Então - disse Ndwetti - não sei porque é que vocês os dois vão voar.
»

Também o Concerto para Clarinete e Orquestra de Amadeus Wolfang Mozart que fica como a nossa música de hoje:


1.

Use máscara, não use máscara, use luvas, não use luvas.

A comunidade científica não consegue entender que estas contradições são terríveis.

Num tempo trágico como este, precisamos de confiança.

Sinto que não tenho confiança.

Isso provoca o desleixo, o «que se lixe!»

Alivio a figadeira com «o que se lixe!» … mas: o que me pode acontecer?

2.

O que este estupor do vírus tem para nos dizer é que é mito difícil ultrapassar o medo, que, de modo algum, se os povos não estiverem juntos nesta luta, se pode resolver esta tragédia que se abateu sobre o mundo. Importantes são os avanços tecnológicos mas de nada servem se falharmos a solidariedade.

Que ajuda deu a Europa, quando face às primeiras centenas de infectados e de mortos, a Itália entrou em fúnebre delírio?

Nenhuma!

Somos de uma fragilidade assustadora.

Será bom começarmos a olhar para o que alguns países europeus, aproveitando-se da pandemia, querem impor aos seus povos.

A Comissão Europeia lembrou o primeiro-ministro da Hungria, Victor Órban, que os poderes que foram aprovados serão para usar durante a pandemia de covid-19 e que não haja a suspensão da democracia no país.

Em causa está a lei que permite a Orbán governar por decreto, sem necessidade de validação parlamentar e por um período indefinido do Estado de Emergência. Teme-se que o primeiro-ministro húngaro use os novos poderes para apertar ainda mais o controlo à sociedade civil.

Mas a gente como Orbán, o que há a fazer é «lembrar»?

3.

Dez milhões de norte-americanos perderam o seu emprego nas duas últimas semanas.

4.

Durante anos e anos, e anos, ouviram dizer que tinham de cultivar as terras, criar gado, pescar. De repente, passaram a ouvir que iriam receber subsídios para deixar as terras ao abandono, abater os barcos.


Vitor Dias, em O Tempodas Cerejas, citava o Expresso-on Line, e face à constatação do semanário, aproveitava para lembrar um discurso do Miguel Viegas, deputado do PCP no Parlamento Europeu em 2018:

« Apenas três cereais asseguram quase metade das calorias que a Humanidade consome: trigo, arroz e milho. Apesar da sua importância, Portugal é profundamente deficitário. Em apenas três décadas o país perdeu 71% da área cultivada com cereais. No final dos anos 80, a superfície cultivada com cereais ocupava cerca de 900 mil hectares, quase 10% do território nacional. No ano passado, a área circunscrevia-se a 260 mil hectares, ou seja, menos 71%, uma perda de 640 mil hectares. De acordo com especialistas, o fim das ajudas ligadas e a liberalização das Política Agrícola Comum explica uma boa parte deste quadro.
Hoje Portugal tem um dos níveis mais baixos do mundo em matéria de autoaprovisionamento de cereais. Mas se atendermos aos cereais utilizados para a alimentação humana, a situação é ainda mais alarmante com a produção de trigo a garantir apenas 5% das necessidades do país.»

5.

Os negros números:

Itália

14.681 mortes

Espanha

10.395 mortes

Estados Unidos

6.586 mortes

França

5.387 mortes

Grã-Bretanha

3.605 mortes

China

3.318 mortes

Irão

3.309 mortes

Holanda

1.487 mortes

Bélgica

1.011 mortes

Alemanha

1.017 mortes

Portugal

246  mortes

No Mundo

58.773 mortes

6.

«Abril é o mês mais doce, pensou. Tinha a impressão de que escrevera a frase numa das suas novelas, Abril é um mês azul, os lilases, os jacarandás, os lírios. E o mar, que se estendia à sua frente, o mar no qual podiam surgir monstros de olhos verdes. Fechou o livro e pousou-o no muro, estendeu as pernas para o lado das rochas.»

Ana Teresa Pereira, de uma crónica no Público s/d

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