O Que Diz Molero
Dinis Machado
Capa: Saldanha
Coutinho
Livraria
Bertrand, Lisboa, Setembro de 1977
«Último cliché do bairro, enquadrado na cidade, e esta
no rio, envolvendo o segundo amor da sua vida, que o primeiro, esse terá sido,
segundo apurou Molero, a Greta Garbo, temos um poema dedicado à menina Mariana,
formosa e intangível, a mais fugaz e pudica das aparições lá numa janela alta,
o seu Amor de Perdição, caiu nas mãos dele, certa noite, o romance de Camilo,
leu-o de um fôlego, enfeitiçado pela maneira como uma simples história de amor
pode assumir a grandeza, estava repleto de febre e de Simão quando rompeu a
aurora», disse Austin, e fez uma pausa. «O poema diz: Há pombos esquecidos nas
estátuas desta cidade naufragada. Mastros de sombra escrevem o teu nome e em
cada letra reconheço a madrugada. Mulheres e homens, enlaçados de cansaço,
dormem um sono fundo, com raízes. Das margens desse sono se levantam as pedras
das palavras que não dizes. Foge o mar dos meus dedos entre a noite, e a noite
é uma canção que te procura. Nos meus olhos ardem estrelas encharcadas que
rodeiam de azul a tua altura. Cada esquina é um cais à tua espera. Faróis e
candeeiros chamam por ti. Como um sonho deslizo e permaneço na rua da janela
onde te vi. Finalmente os pombos largados, partindo desta estátua que tu és».
Houve outra pausa. «Este poema», disse Austin, «intitula-se The High Window,
germinou muito tempo dentro dele e foi escrito anos depois, quando começou a
ler e a amar os livros de outro escritor, Raymond Chandler, homem triste cheio
de humor, que criou uma espécie de herói de aluguer, labiríntico e algo
macerado, a quem os outros serviam logo ao pequeno-almoço, e sem direito a
notícia nos jornais, pontapés na boca do estômago misturados com traição».
Sem comentários:
Enviar um comentário