sexta-feira, 10 de junho de 2011

IDÍLIO EM BICICLETA


"Altiplano frio e molhado, no silêncio da manhã
Gosto de chamar altiplano à vastidão que nos envolve, pois é uma região de vistas intermináveis, situada bem acima dos três mil metros, com cordilheiras ainda mais elevadas no horizonte, para onde quer que olhemos, mas na verdade não tem muito de plano, sucedendo-se as subidas e descidas.
No Altiplano não há vizinhos, nem aldeias, nem luz ou água, nem mercearia, café ou restaurante…no Altiplano Homem e Natureza fundem-se e confundem-se, hoje como antes do Tempo."

"Tudo o que o olhar alcança é de grande rudeza, inóspito e agressivo…a vegetação é parca e rasteira, com aspecto tisnado; de árvores ou arbustos, nem sombra; apenas rochedos e pedregulhos se erguem acima dos escassos tufos de erva. Ainda assim, de quando em quando aparece um conjunto de casebres e currais no planalto. E, não longe, um rebanho de alpacas ou ovelhas ratam, com pressa, o que encontram."



"Nilson, homem, seis anos, pastor de profissão, esculpido nos Andes
Numa curva do caminho, o Nilson, que garante ter seis anos e não ir à escola, conduz o rebanho de trinta ovelhas. Diz-me que vive “naquela casita”, que guarda as ovelhas todos os dias, que não tem frio nem fome…as calças de ganga com bonecos, parecem pertencer realmente a um menino de seis anos, mas o olhar duro, a cara tisnada, as botas de borracha, as mãos duras, não são de menino, são de frio, chuva, terra, rocha. São de abandono e trabalho. São dos implacáveis e temíveis Andes… E quando lhe pergunto se posso tomar uma foto, acena que sim, mas quando aponto a objectiva, ergue as mãos à altura da cara, cerra-as e estica os indicadores. Pergunto-lhe porque o faz e responde apenas “porque sim”… Tiro a foto sem alma. Aquele gesto dos indicadores espetados, rasga-me levemente o peito. Parece estar a proteger-se, esconder-se, mas eu não quero atacá-lo, apenas quero guardar o olhar de um miúdo de seis anos, guardador de ovelhas, não de sonhos. E enquanto me afasto com o olhar e o gesto do Nilson no olhar, vem-me à cabeça um exercício macabro: se de repente trocassem os meninos de seis anos de Portugal, Espanha, França e demais países “ocidentais”, com os Nilsons do Peru, da Bolívia, Brazil e demais países não “ocidentais”. Durante um mês, um só mês! Quantos “ocidentais” sobreviveriam!? e se estendêssemos o exercício aos mais novos e mais velhos, pais incluídos!!? Se os “não ocidentais” deste mundo tivessem a menor percepção do que está para além do seu “planalto”, da sua fome, do seu frio, da sua miséria, “ocidente” e “oriente” tinham de endireitar os pontos cardeais, nem que fosse a ferro e fogo… abano vigorosamente a cabeça, procuro concentrar-me na paisagem, limpar o Nilson do olhar, esquecer porque tenho dificuldade em dizer aos Nilsons que só a bicicleta em que passeio custou 4 000 soles – por cá, uma custa 100 soles e orgulham-se os poucos que as têm…"

Texto e imagens de Idílio Freire

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