Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana
estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
HÁ
20 ANOS
Miguel Torga, como escritor, nunca me entusiasmou.
Demasiado cedo morreu Miguel Torga. Compreendo agora quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde.»
Apostei na vida e perdi. Acreditei nela piamente,
tentei ser-lhe fiel de todas as maneiras, e chego ao fim na triste convicção de
que, afinal, foi tudo inútil, e que apenas cheguei ao desespero de nada poder
distrair-me da evidência da minha morte.
Não. Nunca hei-de escrever a última página. Ficará
sempre uma inédita na minha aflição.
29 de Julho de 1984
O meu drama foi viver a vida a dar passadas firmes e
irreversíveis a duvidar sempre de mim.
Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem
de o negar, mas nunca a força de o esquecer.
Beber estoicamente até à última gota o cálice de
amargura da vida. É o meu ponto de honra.
Despeço-me da casa paterna, do jardim, do negrilho e
das fragas. Das únicas riquezas que gostei verdadeiramente de possuir no mundo,
e de que sou avaro. Que não tive de ganhar, mas de merecer.
É terrível, a morte. Tira sentido às palavras, aos
gestos, ás lágrimas, ao silêncio Deixa a vida sem expressão.
Vivi duas vidas. Uma, desalentado, a ver-me morrer,
outra a lutar inconformado contra todas as mortes.
O mais trágico na velhice doente é vermo-nos morrer
antecipadamente no cansaço e no enfado de quem nos rodeia.
Durei o suficiente para tirar todas as provas reais à
minha natureza. A mais difícil e concludente é esta em curso. O meu pendor
religioso nem perante o sofrimento atroz em que agonizo cede à tentação dum
qualquer alívio beato. Continuo fiel à realidade de ser uma pobre criatura
transitória de barro, sem apetência instintiva da bênção redentora de qualquer
graça providencial solicitada. Morro roído de dores, na perplexidade de sempre,
a consciencializar maceradamente a extensão dos meus erros e falências, sem me
perdoar de ter sido excessivo em tudo, e deixar o mundo triste e desiludido de
mim, a olhar complacentemente os felizes que compram com a renúncia à lucidez,
a ilusão da sobrevivência eterna num outro mundo anestesiado.
28 de Novembro de 1991
Às duas por três, sinto a tentação de registar
miudamente estas horas de agonia. Mas tenho de me render à evidência. A caneta
cai-me da mão aos primeiros rabiscos. E ainda bem. Nasci para cantar a glória
da vida e não para cronista da humilhação da morte.
Envelhecer não é para covardes. E, morrer muito menos.
Corajosamente, envelheci, e corajosamente morro, ou vivi sempre em pânico, com
medo de o não ser?
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Legenda: Esta fotografia de Miguel Torga, em
Trás-os-Montes, foi tirada do livro
Miguel Torga de José de Melo, Editora
Arcádia, Lisboa, Junho de 1960.
Texto publicado em 17 de Janeiro de 2015
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