domingo, 1 de novembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


 Para beber uma garrafinha de tinto, a acompanhar um petisco, qualquer motivo servia.

 Mas o mais feliz de todos era irmos ver um filme do João César Monteiro: juntar o gosto petisqueiro à genialidade do João era o suprassumo do quotidiano, dizia o meu pai.

 É durante a exibição de Veredas que o meu pai agarra com todos os sentidos a 7ªSinfonia de Anton Brucker que, juntamente com cantos populares de Trás-os-Montes e Alto Alentejo, mais música instrumental da Idade Média, faz parte da banda sonora deste filme datado de 1977.

 Aliás, há que salientar que, para além da excelência dos diálogos, há que  mencionar as fabulosas bandas sonoras.

 O mesmo se passa com os filmes de Woody Allen.

Lembrar Vitor Silva Tavares:

 Por mim acontece ou aconteceu que até o escrevinhei (na orelha do volume que reúne os argumentos de Le Bassin de J.W. e de As Bodas de Deus): Melhor do que ele, ninguém escreve em português de - e para - cinema. São os seus scripts (ou filmes da galáxia Guttenberg) de lamber a língua canónica: volúpia e escarnho, ascese e escatologia numa ondulação de tal modo ritmada que é já êxtase erótico, cópula astral. E mais, de passo: Depois, quando iluminados por projecção mágica, viram ópera: teatro e música enquanto, e só, artes sacras - comédias, bufonarias sejam, libertinagens, profanações.

 O bichinho da 7ª de Bruckner já andava a bailar no espírito do meu pai,  mas foi depois de ter visto Veredas que correu a comprar o CD.

 Também já tinha lido em A Cidade das Flores do Augusto Abelaira:

 «E sorridente continuou. É o sorriso dum homem feliz que observa Santa Croce, lé em baixo. Que é livre, que está a cantar, a cantar muito de mansinho, aquele tema do primeiro andamento da Sétima de Bruckner, aquele que se repete e se prolonga ao longo da sinfonia.»

 O meu pai adorava ter prazeres secretos.

 Nunca os explicava, não merecia a pena, ninguém entenderia, murmurava de olho brilhante pelo vinhito.

 Passava-se o mesmo com a sétima de Beethoven, se bem que aí houvesse a referência desse Papa, detestável Pio XII, naquele poema do Jorge de Sena dedicado à memória de Pio XII que quis, ouvir, moribundo, o “Alegretto” da Sétima Sinfonia de Beethoven.

 Música: companheira de todas as horas.

Texto publicado em 3 de Maio de 2018

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