A
palavra do ano 2020 é confinamento,
anunciou hoje a editora HarperCollins.
Em
inglês diz-se lockdown.
«A língua é o reflexo do mundo que nos rodeia
e 2020 foi dominado pela pandemia. Escolhemos confinamento como palavra do ano
porque resume a experiência partilhada por milhares de milhões de pessoas que
tiveram de restringir a sua vida quotidiana para conter o vírus».
De
há uns tempos a esta parte, sem ter dado por isso, o Cais ficou entregue à
pandemia.
Em
muitos momentos do meu quotidiano há um poema do Álvaro de Campos que não
esqueço. Chama-se Poema em Linha Recta
e começa assim:
«Nunca
conheci quem tivesse levado porrada.
Todos
os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.»
Lembro-me
das dificuldades do confinamento de Março.
Até
comecei um diário dos dias difíceis que pouco durou:
« Estes
apontamentos diários ficam por aqui.
Não
que ele entenda que os dias não vão continuar a serem difíceis, mas acontece
que se perdeu no que inicialmente pensara fazer.
Acabou
por cair em extremismos opinativos, acabou em lamechices parvas, as palavras
nunca lhe saíram como ele queria que saíssem.
Pôs
as culpas na historieta que os dias do vírus o perturbavam.
Balelas.
Sente
que para continuar a viver os dias de pesadelo, teremos que viver de forma mais
inteligente.
Mas
os tempos são medíocres, repletos de chicos-espertos-opinativos, repletos de
aldrabões e oportunistas.
Tem
saudades da vida, mesmo sabendo que essa vida não tinha excepcionalidades por
aí além, mas era a sua vida, a possível.
Sobram-lhe
muitas dúvidas que isso venha a acontecer.
Quando
os gestos diários estão sujeitos a estados de emergência ou de calamidade, sabe
que nada disso lhe provoca serenidade, tentará o seu melhor esforço para
irradiar um ligeiro optimismo, mas…
Das
imagens que as televisões lhe deram dos encontros que a CGTP fez no 1º de Maio,
ficou-lhe uma: um homem já de meia-idade, máscara no rosto, bandeira vermelha
na mão, tem um minuto em que baixa a máscara, põe a bandeira vermelha debaixo
do braço, e mete um cigarro à boca. O repórter mudou para outros personagens,
mas ele sorriu e ficou a pensar no prazer do fumar que aquele homem de
meia-idade passou a usufruir naquele manso cair da tarde.
Fumar
mata.
E
daí?
Morre-se
de tanta coisa.
Até
de amor, como o King Kong, seguindo ele os passos do Eduardo Guerra Carneiro.»
Sinto-me confinado e com poucos meios,
ou nenhuns, de fugir ao estupor que nos rodeia.
Acordo e, de imediato, sinto-me
perfilado de medo como, por outros motivos, cantava o Zé Mário Branco.
Sim, tenho medo
Perfilados
de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros
já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados
de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho
pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…
Mas
há que dar volta a esta merda!
Diz-me
como? pergunta-lhe o outro… o tal cínico do costume…
«Nunca
conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.»
Sem comentários:
Enviar um comentário