sábado, 3 de julho de 2010
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS
O A no da Morte de Ricardo Reis
José Saramago
Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 1984
Ainda digeríamos a surpresa e o encantamento de “Memorial do Convento” e eis que José Saramago nos oferece “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.
Foi mesmo de ficar sem respiração.
Ou como escreveu Jorge Listopad: “notável, poderoso e pungente”.
Fernando Pessoa nunca disse em que ano Ricardo Reis morreu. Este é o segredo e razão de um livro maravilhoso. Quase impossível.
“Neste livro nada é verdade e nada é mentira”, disse Saramago
Por diversas vezes interpelado de qual o seu livro favorito, José Saramago, acabou um dia por dizer, que se inclinava para "O Ano da Morte de Ricardo Reis”.
Saramaguiano que sou, é também o livro de que gosto mais.
O começo do livro é soberbo e junta-se à galeria dos melhores começos de livros, não sei se isso existe, mas se não existe, eu invento:
Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado.
Uma primeira frase, a que começa o livro, “aqui o mar acaba e a terra principia” e a que, volvidas 415 páginas, lhe estabelece o final::
“Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.”
Etiquetas:
Fernando Pessoa,
Jorge Listopad,
José Saramago Livros
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