sexta-feira, 9 de julho de 2010

BOLAS PRÓ PINHAL!


No dia 7 de Outubro de 1965, o jornal “O Benfica” publicava um texto de Vinicius de Moraes intitulado “Pelé versus Garincha”.

Um texto bem esgalhado, bem humorado, cheio de gosto pela poesia e pelo futebol. Certamente escrito em Ipanema, entre três/quatro whisquinhos, com Tom Jobim, ao lado, a falar do costumeiro, olhando umas bundas.

Em resumo uma belíssima bola enviada pró pinhal:

“Eu sou o antiesportista por excelência. Tirante os saltos para o infinito, que mesmo estes já me cansam, e algum eventual levantamento de copo em boa companhia, sou homem de ficar todo dormente só para não mudar de posição, ou de trocar de rumo só para aproveitar da direcção do vento. Preguiça? Não creio. Não me considero um preguiçoso. Mas gosto de trabalhar sentado. Aí posso varar dias.
Mas não foi sempre assim. Até aos 25 anos pratiquei esportes com grande convicção: nadei, remei e fiz três anos de jiu-jitsu sob a orientação do amigo Hélio Gracie. Mas veio a noite com os seus encantos, tomou-me a mão, olhou-me grave e terna e passo a passo caminhou comigo, como dizia o poeta. E nunca mais. Hoje em dia eu olho para um remo como quem vê uma cascavel e para uma bola de couro como se ela me fosse dar na cara. A não ser quando ela corre nos pés do Brasil, em Copas do Mundo, ou dos meus irmãos do Botafogo, que é a minha fraqueza. É como diz Ciro Monteiro: tenho tudo para ser Flamengo, excepto essa “cachaça” pelo Botafogo. Não sei, morei no bairro muitos anos, namorei em suas calçadas, estudei em seus colégios, pertenci a suas “trincas”: que era como se chamavam então. Fui menino nessas boas casas antigas, de pouca frente e muito fundo, com alçapão e porão habitável, em ruas como Passagem, Voluntários, 19 de Fevereiro, General Severiano, Reala Grandeza e General Polidoro. Adoro Botafogo com todas aquelas tabuletas com nomes de boas senhoras de família tradicional carioca. Até hoje mudo às vezes de trajecto para voltejar pelo Botafogo-de-dentro, espiando suas casas, suas varandas, suas árvores. Botafogo talvez seja o último bairro onde ainda há jambo.
Mas tudo isso vem a propósito de Mané Garrincha. Leio nos jornais que “seu” Mané, numa pelada entre craques de futebol carioca e paulista, na Ilha do Governador, só não fez o que não quis, balançando o barbante três vezes, aplicando o seu famoso drible e dando bicicletas sensacionais. E isso, apesar dos usuais massacres de fim de ano, constituiu um bom prognóstico para 65. Porque já que não se dá de comer ao povo, que se lhe dê pelo menos o espectáculo dos seus craques em boa forma. Domingo o Botafogo e o Santos disputarão a primeira partida de futebol oficial de 65 para a decisão do Torneio Rio-São Paulo do ano passado. Será um encontro de gigantes, como se Zumbi e Ganga Zumba, depois de lutarem lado a lado, resolvessem medir forças para distrair sua gente, em justa singular. Haverá, é claro, outros homens em campo: grandes jogadores, alguns; mas os olhos da multidão estarão fixos nas escapadas de Pelé de Garrincha, e se o Anjo das Pernas Tortas conseguir engodar o Rei, é provável que haja enfartes, “délivrances” espontâneas, embolias, loucuras súbitas e irrecuperáveis. Liberto do seu menisco e já de posse do seu jogo, Garrincha só terá um pensamento: driblar Pelé, fazê-lo dançar a dança-do-João na sua frente. Pelé, depois dos feitos da pelada de domingo último, não pensará senão em Garrincha: em esvaziá-lo, desmoralizá-lo com a perfeição da sua técnica e sua olímpica competência. Milhares de seres humanos estarão próximos da morte ao ver um correr ao encontro do outro. E eles serão dois admiráveis bailarinos a distrair seus compatriotas de sua miséria e ignorância: Pelé, o Deus Negro de sua gente que não come; Garrincha, a Alegria do Povo que mal sabe escrever o próprio nome.”
Legenda: Caricatura de Vinicius de Moraes tirada daqui.

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