As Pequenas Memórias
José Saramago
Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 2006
Durante alguns anos, em entrevistas e outras conversas, José Saramago foi falando de um livro, que pensava escrever e que já tinha título – “O Livro das Tentações”.
Passaram os anos e esse tal livro, finalmente, apareceu, mas com outro título: “As Pequenas Memórias”.
Nele conta as recordações da sua vida que decorrem entre os quatro e os quinze anos:
“Sim, as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente. "Queria que os leitores soubessem de onde saiu o homem que sou".E de memórias, ou recordações, do resto da sua vida disse, então, que nada mais haveria a escrever.
“As Pequenas Memórias” é um livro comovente, sensível, tocante, de uma escrita fácil porque Saramago não quis fazer literatura.
"São fragmentos, cada momento é um momento em si, o tempo pode andar para trás ou para a frente. Mas o que pode parecer desconexo, arbitrário, creio que ficará organizado na cabeça de quem lê. A nossa infância explica muito o que nós somos”.
De como um miúdo, que dormia no chão, comia a sopa do mesmo prato que a mãe, uma colherada para ti, outra para mim, que vivia ,com os pais, por Lisboa em partes de casa, que ansiava pela chegada do Verão, para poder ir de férias para a Azinhaga do Ribatejo, para junto dos avós Josefa e Jerónimo, das oliveiras, dos bácoros, que teve de abandonar os estudos para ir trabalhar, no fundo, vivências que lhe marcaram a personalidade, “se eu não tivesse vivido aquela infância não seria exactamente este que sou.”
“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. Não é esse o caso daquela escolinha particular, num quarto ou quinto andar da Rua Morais Soares, onde, antes de termos ido viver para a Rua dos Cavaleiros, eu comecei a aprender as primeiras letras. Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda. É uma recordação própria, pessoal, nítida como um quadro, a que não falta a sacola em que acomodava as minhas coisas, de serapilheira castanha, com um barbante para levar a tiracolo. Escrevia-se na ardósia com um lápis de lousa que se vendia em duas qualidades nas papelarias, uma, a mais barata, dura como a pedra em que se escrevia, ao passo que a outra, mais cara, era branda, macia, e chamávamos-lhe «de leite» por causa da sua cor, um cinzento-claro, tirando a leitoso, precisamente. Só depois de ter entrado no ensino oficial, e não foi nos primeiros meses, é que os meus dedos puderam, finalmente, tocar essa pequena maravilha das técnicas de escrita mais actualizadas.”
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