quinta-feira, 8 de julho de 2010

BLIMUNDA


Despacho da Lusa, datado de 11 de Outubro de 1989:

“Blimunda, a mulher que em jejum via os corpos à transparência, dá o nome à ópera inspirada em trechos de “Memorial do Convento”, de José Saramago, que subir à cena no Scala de Milão em Maio de 1990.
O escritor português mantém contactos, desde há dois anos, com o maestro Azio Cargui, que já escreveu o libreto e prepara o início dos ensaios.
Apenas alguns elementos dramáticos de “Memorial do Convento” serão adaptados à ópera, tais como o “Auto de Fé”, o “Transporte da Pedra” e o “Voo da Passarola”.


Efectivamente em 20 de Maio de 1990, “Blimunda", ópera em 3 actos, estreou no Scala de Milão, com música de Azio Corghi, Libreto de Azio Corghi e José Saramago, Encenação de Jerôme Savary, Cenários de MIchel Lebois.


Em 15 de Maio de 1991 “Blimunda” foi representada no Teatro Nacional de S. Carlos.

Nume entrevista, publicada no “Público” de 12 de Maio de 1991, dizia José Saramago:

“O libreto da “Blimunda vem com dois nomes, o meu e o de Azio Corghi, mas o trabalho essencial é dele… A minha contribuição foi mais uma troca de impressões, uma discussão de proposta de soluções, um trabalho de acompanhamento, muito mais do que um fazer real. Mas ele insistiu com grande delicadeza em que o libreto contivesse os nossos dois nomes”

Chama-se O Destino de Um Nome o texto que José Saramago escreveu expressamente para o programa da estreia de “Blimunda” em São Carlos:

Muitas vezes me perguntei: porquê este nome? Recordo-me de como o encontrei, percorrendo com um dedo minucioso, linha a  linha, as colunas de um vocabulário onomástico, à espera de um sinal de aceitação que haveria de começar na imagem decifrada pelos olhos para ir consumar-se, por ignoradas razões, numa parte adequadamente sensível do cérebro. Nunca, em toda a minha vida, nestes quantos milhares de dias e horas somados, me encontrara com o nome de Blimunda, nenhuma mulher em Portugal, que eu saiba, se chama hoje assim. E tão-pouco é verificável a hipótese de tratar-se de um apelativo que em tempos tivesse merecido o favor das famílias e depois caísse em desuso: nenhuma personagem feminina da História do meu país, nenhuma heroína de romance ou figura secundária levou alguma vez tal nome, nunca estas três sílabas foram pronunciadas à beira de uma pia baptismal ou inscritas nos arquivos do registo civil. Também nenhum poeta, tendo de inventar para a mulher amada um nome secreto, se atreveu a chamar-lhe Blimunda.

Tentando, nesta ocasião, destrinçar aceitavelmente as razões finais da escolha que fiz, seria a primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si sós a separam do seu mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo. Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, , o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado.




Ou talvez não seja apenas assim. Regressando ao vocabulário, e mesmo sem recair em excessos de minúcia, posso observar como abundam os nomes de pessoa extraordinários e extravagantes, que ninguém hoje quereria usar e antes só excepcionalmente, e contudo não foi a nenhum deles que escolhi: rareza e estranheza não seriam, afinal, condições suficientes.

Que outra condição, então, que razão profunda, porventura sem relação com o sentido inteligível das palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos? Creio que sei hoje a resposta, que ela me acaba de ser apontada por esse misterioso caminho que terá levado Azio Gorghi denominar Blimunda uma ópera extraída de um romance que tem por título Memorial do Convento: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todas, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se própria alma humana se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom, a recolhê-lo num simples livro, à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em algumas magnificamente.”


Rui Vieira Nery, na crítica para o “Independente” de 24 de Maio de 1991, escreve:

“Gostaria, logo à partida, de deixar claro que o melhor da ópera é o libreto de Corghi e Saramago”.

E termina:


“No conjunto , um espectáculo sério e interessante, agradável à vista e ao ouvido mas de cuja continuidade no reportório operático, uma vez terminado o ciclo das suas produções iniciais, tenho as maiores e mais fundadas dúvidas.”

Legenda: Capa do programa da estreia de “Blimunda” no Teatro Nacional de S. Carlos.

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