Memorial do Convento
José Saramago
Capa: José Serrão
Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 1982
Este livro, Memorial do Convento poderia começar
como tantos e tantos outros: Era uma vez…
Aliás o propósito
chega a ser aflorado na contracapa:
«Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra.
Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta
e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu
doido. Era uma vez.»
Mas o autor recorre a
outros voos e lança o livro de maneira arrebatadora:
« D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de
sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria
para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se
murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a
madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só
entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque
a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas
tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque
abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na
praça. Além disso, quem se extenua a implorar ao céu um fi lho não é o rei, mas
a rainha, e também por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais
se de Portugal for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda
razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser
naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em orações
ocasionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou
impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever
real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces,
se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o
esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos
comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima
retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda
não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a
barriga de D. Maria Ana. Mas Deus é grande.»
Os porquês da
escolha memorial:
« Atraiu-me na história do Convento de Mafra o esforço e o sacrifício
dos milhares de homens que trabalharam na construção do monumento à vaidade de
um rei e ao poder da Igreja.»
Óbvio que não é
apenas o começo do livro que é fabuloso.
Todo ele é um desfiar
de maravilhas, um prazer enorme, «uma
história que nos deixa sem fôlego», no sábio dizer de Armando Silva
Carvalho.
« Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de
franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a
contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e
ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de
frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa
da rainha.»
Um romance de amor
que também mete um padre sonhador por uma passarola e, como não dizer: de
princípio a fim o envolvimento da música de Domenico Scarlatti.
Sim, um romance de
amor.
«... Só uma mulher que está deitada num restolho com um homem em cima
de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias
de quem está a gostar.»
Estavam a ser
sobrevoados pela Passarola de
Bartolomeu de Gusmão.
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