História do Cerco de Lisboa
José Saramago
Editorial Caminho, Lisboa, Março de 1989
Numa amena e simples conversa com a revisora dos seus livros, José Saramago, a dado passo, ouve-a dizer:
Dos revisores é que nunca ninguém se lembra.
O autor não ligou muito à frase mas, o que é certo, é que a frase fica-lhe a bailar por dentro.
Assim nasce a vida de um homem, Raimundo Silva de seu nome, que está a rever um livro que se chama História do Cerco de Lisboa.
Intencionalmente apõe um não a um texto histórico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa.
Maria Sara, chefe dos revisores da editora onde Raimundo Silva trabalha, incita-o a reescrever o texto histórico, a partir da perspectiva instaurada pela palavra que entendeu modificar.
Eu penso que todos os revisores gostariam de ser autores. Mas este revisor não quer propriamente escrever um livro. O que há em certa altura, é um momento de insurreição que o leva a introduzir num texto que ele devia respeitar, que é obrigação sua defender e conservar, que o leva a introduzir a negação, a dizer que não é verdade aquilo que historicamente aconteceu. E a partir daí encontra-se numa situação difícil, da qual sai por obra e graça de uma mulher. Como em geral acontece nos meus livros.
Da História do Cerco de Lisboa dirá António Cabrita: "Um belo e feliz romance.”
São três horas da madrugada. Raimundo pousa a esferográfica, levanta-se devagar, ajudando-se com as palmas das mãos assentes sobre a mesa, como se de repente lhe tivessem caído em cima todos os anos que tem para viver. Entra no quarto, que uma luz fraca apenas ilumina, e despe-se cautelosamente, evitando fazer ruído, mas desejando no fundo que Maria Sara acorde, para nada, só para poder dizer-lhe que a história chegou ao fim, e ela, que afinal não dormia, perguntou-lhe, Acabaste, e ele respondeu, Sim acabei, Queres dizer-me como termina, Com a morte do almuadem, E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu, Na minha ideia, Ouroana vai voltar para a Galiuza, e Mogueime irá com ela, e antes de partirem acharão em Lisboa um cão escondido, que os acompanhará na viagem, porque pensas que eles se devem ir embora, Não sei, pela lógica deveriam ficar, Deixa lá, ficamos nós. A cabeça de Maria Sara descansa no ombro de Raimundo, com a mão esquerda ele acaricia-lhe o cabelo e a face. Não adormeceram logo. Sob o alpendre da varanda respirava uma sombra.
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