Reuniam-se aos domingos à tarde
na leitaria
com os casacos de pele de zebra e os bichos
ao pescoço de olhos de vidro
na juventude tinham sido
criadas de servir
e toda a vinha tinham lutado
por uma boneca loira em cima da cama
com colcha de cetim cor-de-rosa e passamanarias
a ponto de dormirem no chão
transidas de frio
bebiam chá comiam torradas
com muita manteiga
e pediam bolos de creme colorido
uma vez por outra o criado simpático
(havia um outro mas com maus modos para elas)
conseguia arranjar-lhes restos
de bolo de noiva
e as três exultavam então
só por acanhamento não encomendavam
um bolo de noiva para as três
num dia de Natal particularmente frio
sentiram qualquer coisa
nas saias plissadas
era um rato vulgar com um olhar
muito meigo e assustado
afeiçoaram-se logo ao animal
que levaram para casa comovidas
chamavam-lhe o nosso menino lindo
e consentiam-lhe tudo
o rato de noite roía as três bonecas
e as três de manhã iam contemplar os estragos
como aquelas pessoas que se deixam ficar paradas
diante da casa onde se consumou o crime hediondo
ao menos podiam ter arranjado um cão
ou uma criança da Santa Casa
quando o rato adoeceu chegaram a ser insultadas
nas salas de espera das clínicas veterinárias
(a excentricidade nos afectos mais tarde ou mais cedo
sai cara)
o rato ficou internado uns dias
e elas suspeitaram que tinha sido trocado
desconfiaram então muito das instituições
o mundo afinal era uma encenação
e não valia a pena perguntar
se um criado um veterinário ou um bolo de noiva
eram a sério ou a fingir
só se podia tentar averiguar se a encenação
revelava bom gosto ou não
Adília Lopes em Resumo: a poesia em 2009
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