Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
SARAMAGUEANDO
Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que
nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são
irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de
os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos
impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida...
Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que
recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos
porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se
reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um
desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se
não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças... Não o
cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta
rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e
subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição
plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta:
«Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de
lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os
alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes
casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino
Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na
segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e
apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que
todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as
crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor
nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho
mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração.
Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde.
Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os
cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito
séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi
nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito
de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?
José Saramago, excerto da crónica A Neve Preta em Deste
Mundo e do Outro
Texto publicado em 14 de Dezembro de 2017
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