segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

AS OUTRAS CANÇÕES DE NATAL

Demos cabo do planeta.  

Disto e daquilo, vivemos com todas as comodidades.

Mas é terrível e trágico o preço a pagar.

Como deixou expresso o poeta José Gomes Ferreira:

«Os filhos dos nossos filhos hão-de insultar-nos: “covardes! Que nos deram um planeta sujo”»

Esta canção, What a Wonderful World, que também vem do saco das não canções de Natal, é uma lindíssima canção, mas é uma mentira.

Tiremos o disfarce e não veremos nem as florestas verdes, nem as rosas vermelhas, nem o céu azul, antes angústias derramadas em pontes sobre águas turbulentas, para lembrar uma canção de Paul Simon.

Esta canção é também pretexto para vos ler um bonito texto de Truman Capote sobre  Louis Armstrong tirado de Os Cães Ladram:

«Com certeza que o Satch já se esqueceu, mas a verdade é que foi um dos primeiros amigos deste escritor, conheci-o com quatro anos, por volta de 1928, quando ele, um Buda achocolatado e rechonchudo de uma intrépida felicidade, tocava a bordo de um barco a vapor turístico entre Nova Orleães e St. Louis. Não interessa porquê, mas eu tinha a oportunidade de fazer a viagem amiúde, e para mim a doce revolta do trompete de Armstrong, a exuberância coaxada dos seus apartes, «’come to me, baby», são um pedaço da madalena de Proust; fazem ressurgir as luas do Mississípi, convocam as luzes enlameadas de vilas ribeirinhas, o som das sereias do rio como bocejos de um crocodilo; ouço a corrente do rio mulato a rumorejar, ouço, sempre, tump! Tump! a batida do pé sorridente do Buda, abrindo caminho aos gritos pela «berma soalheira da rua» e os dançarinos em lua-de-mel, estonteados do álcool de contrabando e suando através do pó de talco, abraçados como coelhinhos às voltas pelo salão de baile do barco. O Satch foi bom para mim, disse-me que eu tinha talento, que devia ir para o teatro de revista; deu-me uma cana de bambu e um chapéu de palha com uma fita verde-hortelã, e todas as noites anunciava do alto do palanque:

- Minhas e meus senhores, vamos agora apresentar-vos um dos miúdos simpáticos da América que vai fazer um pequeno número de sapateado.

Depois eu passava pelos passageiros a recolher moedinhas no chapéu. Isto passou-se todo o Verão, fiquei rico e vaidoso; mas em Outubro o rio engrossou, a lua embranqueceu, os clientes começaram a rarear, as viagens de barco terminaram e com elas a minha carreira. Seis anos mais tarde, a morar num internato de onde queria fugir, escrevi ao meu antigo benfeitor, já então famosos, a perguntar-lhe se ele não me podia arranjar um emprego no Cotton Club, ou noutro sítio, se eu fosse para Nova Iorque. Não obtive resposta, talvez ele nunca tenha recebido a carta, não faz mal, eu continuei a gostar dele, ainda gosto.»

 

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