sábado, 19 de dezembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM


O escultor José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, rua que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário.

O assassinato está assinalado na canção de José Afonso A Morte Saiu à Rua do álbum Eu Vou Ser Como a Toupeira, gravado em 1972.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos e autocarros de Santo Amaro. 

No livro Viagens,  o poema Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei, Mário Castrim regista  esses últimos momentos de vida de José Dias Coelho:


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

No  nº 9, referente a Março de 1962, de Notícias do Bloqueio, Pedro Alvim, no poema intitulado Lisboa, assinala o assassínio de Dias Coelho:

4 – Alcântara

Há quem tombe por um rio

Impetuoso e comum:

Alcântara dos tiros cegos

Alcântara sessenta e um.


No dia 24 de Novembro de 1976, começava, no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, o julgamento do ex-agente da PIDE António Domingues, acusado de ter assassinado José Dias Coelho, julgamento que só terminaria no ano seguinte:

Na 1ª página do “Diário de Notícias”, de 6 de Janeiro de 1977, lia-se:

«O antigo agente da PIDE/DGS António Domingues, responsável pela morte do escultor comunista José Dias Coelho, foi, ontem, condenado em três anos e nove meses de prisão maior. Perdoados 90 dias e tomado em conta o tempo de prisão preventiva que já sofreu, desde 1974, vai o réu cumprir apenas mais cerca de 10 meses de cadeia. O tribunal (3ºTMTL) considerou não ter havido homicídio voluntário, mas apenas “ofensa corporal voluntária, de que resultou a morte “praeter-intencional”. Dado como provado o disparo de dois tiros, o último dos quais com a arama “muito próxima da roupa da vítima, a sentença foi recebida pela assistência com uma manifestação de protesto.»


No editorial do Diário de Lisboa, também de 6 de Janeiro, lia-se:

«Na verdade, reconhece-se a legitimidade da “profissão” de assassino de adversários políticos de um regime. É um insulto à memória de José Dias Coelho.

Um insulto aos mortos e aos vivos da resistência antifascista.

Um insulto ao 25 de Abril.»

Legenda:  A imagem de topo é uma gravura de José Dias Coelho, representando o operário Cândido Martins, assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral e publicada no “Avante” nº 130 de Novembro de 1961. Para a que seria a sua última gravura, José Dias Coelho escreveu: “De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas”

T

Texto publicado em 23 de Fevereiro de 2017

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