Natal
Antologia de contos
natalícios
Organização de Mário
Braga e Afonso Botelho
Capa e ilustrações:
Helena Sá
Editora Arcádia,
Lisboa, Novembro de 1978
Em 1934, passámos a véspera de Natal num velho vagão onde viajavam três
cães perdigueiros, um hortelão de frades e uma criada de servir, a Rata, que
estreava uma peineta nova, dessas que havia com aplicações de turquesa fingida.
Não havia transportes e, pouco antes da meia-noite, meu pai lembrou-se de
visitar a família, que não era numerosa e por isso lhe dava pena deixá-la, à
ceia, na vasta mesa toda mordida por golpes de canivete que até parecia obra de
talha. Sujeitámo-nos pois àquela viagem no correio da noite que, além do mais,
ia cheio até aos tejadilhos. Alguns preferiram o furgão; levava caixotes de
passas de Alicante e uma urna para um morto, coberta com um pano encerado, como
se fosse destinada aos abismos do oceano. A Rata persignava-se e rezava umas
estropiadas letanias que ela sabia. O hortelão, o Miguel Cunha, era da minha
terra – o maior mentiroso, o mais famoso gastador de petas lá do sítio. Nunca
vi tal arte feiticeira, tal cordura bem-falante em tecer fantasias. Aos poucos,
íamos com ele na legenda dos assuntos e, se um céptico nos cortasse o passo,
éramos como mastins sobre a sua lucidez idiota. Porque ao pé do Miguel Cunha,
tão generoso a contar-nos novelas, casos tortos, extraordinárias missões do
bicho homem, todos os outros eram tolos e leigos no sentimento de urdir a vida.
O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o
rasto delas pelas portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de
lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.
Agustina Bessa-Luís
do conto O Correio da Noite
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