sábado, 26 de dezembro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

DE SOLIDÕES

Aos poucos, vamo-nos despedindo do Natal, e relembrando uma das mais interessantes e pungentes canções de Natal , Fairytale Of New York dos Pogues com a Kirsty MacCall, sabemos que os rapazes do coro da polícia de Nova Iorque cantavam Galway Bay, enquanto os sinos tocavam por toda a cidade, ao mesmo tempo que José Tolentino Mendonça, numa das suas excelentes crónicas no Expresso, abordando a solidão do Natal, revelava que lera uma carta que o escritor Jack London escreveu na manhã de Natal, de 1898, quando tinha 20 anos. e momentaneamente abandonara as errantes vagabundagens no seu barco, pelas celebrações caseiras do Natal:

«Mas no fundo dos rituais familiares a que ele assiste (a abertura dos presentes diante da lareira acesa, o risos das crianças felizes, os ornamentos aconchegantes, os reflexos de uma existência segura…) descobre-se sempre mais como um estranho, e tudo aquilo que o deveria apaziguar fá-lo afinal descobrir vencido, como se o seu “bilhete de lotaria da vida tivesse o número errado”. Ele que passou a adolescência a saltitar entre centros de reeducação, que teve de lutar para aguentar-se nos estudos, que, para sobreviver, foi ardina, pescador furtivo, agente de seguros, caçador de focas, pugilista e garimpeiro, ele homem de têmpera rija sente-se naquela manhã vacilar, perdido dentro do grande puzzle que o Natal faz parte. A carta que Jack London escreve é uma espécie de relatório do seu desconforto. Mas creio que não é só isso. É também um documento sobre a grande solidão que o Natal escancara».

Linhas à frente, José Tolentino pergunta:

“Porque é que o Natal faz sofrer?”

Guardei sempre um velho recorte do velho «Diário de Lisboa» de 27 de Dezembro de 1976:

“António Manuel, de 14 anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras”
O jornalista fechava assim a notícia:
“De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne para confraternizar.”

Lembro, com muita tristeza lembro, aquela noite, as festas felizes a findarem, quando o poeta Eduardo Guerra Carneiro, feito rapaz do trapézio voador,se mandou, no meio do silêncio, para um qualquer céu estrelado.

E sempre aquela canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.

Ainda José Tolentino Mendonça:

«O Natal é atravessado por um dramatismo que nos abala, pois nos retira do feérico entretenimento das perguntas penúltimas e nos coloca perante as perguntas últimas.» 

Legenda: pintura de Van Gogh

Texto publicado em 30 de Dezembro de 2019.

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