Hora Di Bai
Manuel Ferreira
Capa: João da
Câmara Leme
Colecção O Livro
de Bolso nº 52/53
Portugália Editora,
Lisboa, Setembro de 1963
Naquele tempo de fome a ilha de São Vicente era o
porto de salvamento.
Empurrados do interior, os povos vieram arrastando-se
para o litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de
um caldinho de peixe – que luxo! – de uma cana para chupar, ou até de folhas
verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de
alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres
tinham sido também arrastados nos ventos da miséria. Nem a sopa da assistência
evitava que a carroça da Câmara, no alvor da madrugada, levasse os que haviam
tombado, de noite, na rua, inteiriçados e frios. Nem a sopa da assistência o
evitava, bem se pode dizer, pois as bocas famintas, senhor, eram às dezenas de
milhar.
Um pesadelo perpassava pelas localidades e casalejos
ribeirinhos, de ponta a ponta, e galgava pela amarelidão da terra nua e
requeimada.
Dondê aquelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos
em arco ao rés-do-chão? Dondê aqueles pés de papaia carregadinhos, e aquelas
batatas-doces, e aquela mandioca, aquele nhame, e aquelas laranjas, a água a
crescer na boca!, e aquele milho cobrindo os sequeiros e os regadios, dando a
fartura da gente e dos animais?! Nem ervas, nem uma raiz a despontar, nem um
rebento a asseverar que a vida não era promessa vã, nessas ilhas desgarradas no
meio do mar!
Dondê aquelas casas, o movimento da tardinha? Dondê
aquele falatório dos homens, os chamos das mães pelos filhos que andavam
correndo pelas ribeiras? Gente, donde?! Lá no interior, casas intactas, nem uma
só! Fantasmas solitários na paisagem descarnada.
A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. A
maldição da fome.
Nada bulia a não ser os revérberos do Sol na
distância.
Que silêncio!
Nem pio de ave. Nem grito de dor ou ciclo de tristeza
feria tamanha solidão. Até a morna, drama feito canção, se diluíra no silêncio
da dor. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica – que eram? Destroços de
angústia, restos de vida absurda e degradada, onde remotas esperanças,
desencantadas dum estado de morbidez, se desprendiam teimosamente lá do fundo
do inconsciente, na terrível ânsia de viver.
Fogo, tristeza, abandono de fim-de-mundo. Só, na terra
nua e bem amada!
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