segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Hora Di Bai

Manuel Ferreira
Capa: João da Câmara Leme
Colecção O Livro de Bolso nº 52/53
Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1963

Naquele tempo de fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento.
Empurrados do interior, os povos vieram arrastando-se para o litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de um caldinho de peixe – que luxo! – de uma cana para chupar, ou até de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham sido também arrastados nos ventos da miséria. Nem a sopa da assistência evitava que a carroça da Câmara, no alvor da madrugada, levasse os que haviam tombado, de noite, na rua, inteiriçados e frios. Nem a sopa da assistência o evitava, bem se pode dizer, pois as bocas famintas, senhor, eram às dezenas de milhar.
Um pesadelo perpassava pelas localidades e casalejos ribeirinhos, de ponta a ponta, e galgava pela amarelidão da terra nua e requeimada.
Dondê aquelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco ao rés-do-chão? Dondê aqueles pés de papaia carregadinhos, e aquelas batatas-doces, e aquela mandioca, aquele nhame, e aquelas laranjas, a água a crescer na boca!, e aquele milho cobrindo os sequeiros e os regadios, dando a fartura da gente e dos animais?! Nem ervas, nem uma raiz a despontar, nem um rebento a asseverar que a vida não era promessa vã, nessas ilhas desgarradas no meio do mar!
Dondê aquelas casas, o movimento da tardinha? Dondê aquele falatório dos homens, os chamos das mães pelos filhos que andavam correndo pelas ribeiras? Gente, donde?! Lá no interior, casas intactas, nem uma só! Fantasmas solitários na paisagem descarnada.
A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. A maldição da fome.
Nada bulia a não ser os revérberos do Sol na distância.
Que silêncio!
Nem pio de ave. Nem grito de dor ou ciclo de tristeza feria tamanha solidão. Até a morna, drama feito canção, se diluíra no silêncio da dor. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica – que eram? Destroços de angústia, restos de vida absurda e degradada, onde remotas esperanças, desencantadas dum estado de morbidez, se desprendiam teimosamente lá do fundo do inconsciente, na terrível ânsia de viver.
Fogo, tristeza, abandono de fim-de-mundo. Só, na terra nua e bem amada!

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