sábado, 20 de junho de 2020

SNAKE OIL OU, SE PREFERIREM, BANHA DE COBRA


Quando eu vivia no Campo Pequeno, mesmo defronte do jardim, costumava assistir às exibições dos vendedores de “banha de cobra” que por lá passavam.

O esquema era sempre o mesmo. Chegavam com o seu grande malão, escolhiam um local estratégico e faziam-se anunciar. As pessoas aproximavam-se e rapidamente se formava um círculo em volta do vendedor, que iniciava, então, a sua preleção.

Eu era miúdo de 7 ou 8 anos, e com facilidade arranjava sempre um lugar de primeira fila.

Um dia um desses vendedores chamou-me para o ajudar.

A medo, lá avancei para o meio do círculo, para junto dele. Não me lembro de tudo nem sequer do que ele vendia, mas lembro-me perfeitamente que, a determinada altura, me pôs um saco preto nas mãos e me disse: “agora abre a boca o mais possível”


Eu, é claro, abri a minha pequena boca o mais que podia e a multidão desatou a rir à gargalhada.

“Não é a tua boca, rapaz!”, disse o vendedor, “é a do saco”

Ora se eu nem sequer sabia que um saco tinha boca, como é que a poderia abrir…?

É claro que tudo isto era estudado pelo vendedor e ele sabia muito bem o bom impacto que esta graçola tinha na assistência.  Já devia ter feito esta cena com dezenas de miúdos e sabia que a reação deles era sempre a mesma, ou seja, abrir a própria boca…

Mas eu não me ralei nada porque, imaginem, depois de no final ter concretizado todas as suas vendas, o homem deu-me uma moeda de vinte e cinco tostões!


Ora vinte e cinco tostões, meus amigos, era algo que nunca antes tinha sentido na palma da minha mão… Uma pequena fortuna…!

Comprei gelados, rebuçados, chupa-chupas, pastilhas-elásticas, bonecos da bola e o dinheiro não se esgotava...

É claro que, a partir daí, ainda mais “à coca” ficava e sempre que chegava um novo vendedor ao jardim, aí estava eu na primeira fila à espera de ser chamado para trabalhar…

A verdade é que  nunca mais aconteceu e esta minha carreira de artista ambulante foi de muito curta duração.


Mas agora perguntarão vocês:  que raio de banha de cobra é que este gajo se prepara para nos impingir hoje, com toda esta conversa…?

Vou falar-vos  da importância dos vendedores de “banha de cobra” na difusão da “Folk Music” ou, se preferirem um conceito mais genérico, da música tradicional nos Estados Unidos. 


A esses vendedores, que impingiam a um público crédulo e ignorante poções milagrosas  como “snake oil”, “wizard oil” e outras coisas afins à base de ópio,  morfina, cocaína e álcool, dava-se, então, o pomposo nome de “Medicine Shows”.

Mas antes de vos falar deles convém apresentar, primeiro, os chamados “Minstrel Shows”, já que a forma de atuação destes constituiu, de certa modo, uma inspiração para os “Medicine Shows”.

Os “Minstrel Shows” são um espetáculo que teve a sua origem na Europa e foi introduzido nos Estados Unidos, com algumas adaptações,  através dos bares, tabernas e teatros de Nova Iorque, nos inícios do Séc. XIX.

Com o progresso das vias de comunicação, daí partiram, de uma forma itinerante, para todo o território, em especial para o longínquo Oeste, podendo ser considerados como uma das primeiras formas de entretenimento popular tipicamente americanas.

Mantiveram-se em atividade até aos inícios do Séc. XX, embora tivessem o seu período áureo até ao início da Guerra de Secessão. Entraram em acentuado declínio após o final da Guerra, tendo sido progressivamente substituídos pelas “troupes” de “Vaudeville” e pelos referidos “Medicine Shows”.


Os “Minstrel Shows” são um  misto de espetáculo cómico e de espetáculo de dança e musical, e caracterizavam-se pela presença de um ou mais atores brancos com a cara pintada de preto, mantendo, apenas, uma pequena faixa branca em torno dos olhos e da boca. Quem se lembrar de Al Jolson em “The Jazz Singer”, primeiro filme falado da História do Cinema, percebe bem aquilo a que me estou a referir.

Este “shows”, que durante algumas décadas percorreram o território dos Estados Unidos de lés a lés com “troupes” de diferente dimensão,  tiveram aspetos positivos e outros francamente negativos.

Um dos aspetos positivos foi o de manterem os territórios em contacto, já que iam aos lugares mais recônditos e, para muito boa gente, este era o único contacto regular que podiam manter com gente vinda do do exterior.

Outro aspeto relevante foi a difusão da Música de umas regiões para outras. A determinada altura da sua existência  estes “shows” eram tão importantes que até compositores de prestígio como Stephen Foster, considerado o Pai da Música Popular Americana, escreviam músicas que lhes eram destinadas, e clássicos da “Folk Music” como “Oh! Susanna”, “Campdown Races” e “My Old Kentucky Home” vieram à luz nesses dias e nesse contexto. E até “Dixie”, o hino dos Confederados, deve a sua origem aos “Minstrel Shows”.


Como aspeto francamente negativo fica a triste imagem que estes espetáculos deixavam do Negro americano e o evidente racismo de que se revestiam. Se sempre existiu e continua a existir um profundo racismo na Sociedade americana, os “Minstrel Shows” têm, seguramente, a sua quota-parte de responsabilidade histórica, porque foram eles quem, durante décadas, ajudaram a consolidar  essa imagem junto de uma vastíssima audiência Branca.  As estátuas de “Minstrels” que se ponham a pau, portanto...

Um espetáculo de “Minstrel” era, geralmente, dividido em três partes: uma primeira parte de dança e canções, com algumas graçolas pelo meio; uma segunda parte assente num discurso satírico alusivo a acontecimentos da época; um terceira e última parte de representação teatral de cariz popular e humorístico, com cenas quase sempre passadas nas plantações, opondo um Negro a um Branco.   


A lógica desta terceira parte do espetáculo era algo semelhante à do palhaço rico “versus” palhaço pobre, do Circo, em que o primeiro humilha o segundo, para deleite da assistência.

O palhaço rico era aqui o “Dandy”, muitas vezes associado a alguém do Norte, ao capataz ou mesmo ao próprio proprietário das plantações rurais.

O palhaço pobre era o Negro, quase sempre representado, de uma forma estereótipada, como alguém infantil, simpático mas preguiçoso, pouco inteligente e demasiado dado à bebida, à dança e à cantoria. E esta última parte acabava  sempre com o Negro a sapatear e a cantar  umas músicas que se pretendia fazer crer que era a verdadeira Música Negra, mas que era, na maioria dos casos, uma mera mistificação.

A maior parte destes espetáculos fazia uma apologia da escravatura. A ideia que transmitiam era que o Negro era bem tratado nas plantações e era aí que ele se sentia bem e desejava permanecer.

Com o final da Guerra da Secessão este discurso começava a não fazer muito sentido mas, curiosamente, muitos foram os Negros libertos no final da Guerra que, à falta de melhor ocupação, optaram por integrar este tipo de espetáculos. Pintavam-se de branco à volta dos olhos e da boca, como quem emita homem branco a disfarçar-se de negro... 


O tom paródico dos espetáculos manteve-se, o discurso racista atenuou-se um pouco e os negros até trouxeram consigo para os  “Minstrels” as suas músicas autênticas, que não tardaram a tornar-se património da Música Tradicional Americana, como é o caso de “Frankie and Albert”, “The Boll Weevil” ou “The Blue-Tail-Fly”.

Como sempre sucede neste tipo de espetáculos, a dimensão e a ambição dos “Shows” era muito diferente, desde uma simples carroça com duas pessoas até uma ou mais carruagens com os artistas e o respetivo equipamento. Mas o mais habitual era serem, apenas, entre quatro a 6 elementos.

Também a localização do espetáculo variava em função da ambição e dos meios de cada um: uma sala de espetáculos alugada para os mais poderosos, com bilhetes pagos à entrada; o terreiro da aldeia para outros, com recolha de uma moedinha com o chapéu no final do espetáculo…

Resta reforçar, para concluir, a ideia de que alguns destes grupos de “Minstrels” atingiram uma enorme projeção a nível nacional. É o caso , por exemplo, dos “The Virginia Minstrels”, que integravam o compositor Dan Emmett, autor de “Dixie”, ou dos “Christy Minstrels”, cujo nome não contém qualquer conotação religiosa, mas antes se refere a Edwin Pearce Christy, o seu “leader”. Estes “Christy Minstrels” eram tão importantes no seu tempo que fizeram acordos de exclusividade com Stephen Foster, o compositor de “Oh! Susanna” de que já atrás vos falei, para algumas das suas canções.

E como isto anda sempre tudo ligado, por ocasião do “Folk Revival” dos ano 60 estes “Christy Minstrels” viriam a ser homenageados por um grupo “Folk” que se chamou “The New Christy Minstrels”. Era um grupo muito grande de onde estavam sempre a sair uns e a entrar novos elementos, e pelo qual passou gente de nomeada como Randy Sparks, o fundador, Barry McGuire, John Denver, Kenny Rogers, Gene Clark ou Roger McGuin.     

E de “Minstrel Shows”, por hoje,  já chega...   

Passemos, então, aos “Medicine Shows”.   

Como é sabido, o discurso Humanista dos dirigentes do Norte no que respeita à escravatura ocultava uma outra realidade, que era a de um Sistema Capitalista que já não aguentava ficar confinado a algumas centenas de grandes consumidores nos estados do Sul, mas antes necessitava de uma enorme extensão de pequenos consumidores para poder alargar os seus tentáculos… 

O Norte industrializado olhava para os Estados do Sul, predominantemente rurais, como potenciais clientes para os seus produtos, e para a vastíssima mão-de-obra escrava como potenciais consumidores.  

Enquanto escravos não remunerados não teriam essa possibilidade, mas um enorme exército de pequenos trabalhadores rurais, mesmo mal remunerados mas podendo comprar a crédito, já seria muito bem visto...  

O surgimento dos “Medicine Shows” nas décadas que se seguiram ao final da Guerra da Secessão insere-se, assim, nessa lógica de expansão de um pequeno capitalismo.

Na sua essência  e itinerância, os “Medicine Shows” eram semelhantes aos “Minstrel Shows”, mas em lugar de venderem um bilhete para um espetáculo, vendiam um produto.

Vendiam, é claro, gato por lebre, óleos de cobra ou de lagarto que, segundo eles, tinham a particularidade de serem bons para todos as maletas de que as pessoas padecessem, fosse elas quais fossem. “Good for what ails you”, que era uma das expressões publicitárias mais utilizadas na época.

Feitos à base de ópio, morfina, cocaína e álcool, estes “elixires milagrosos” deixavam a quem os tomava uma sensação de bem estar, ao mesmo tempo que gerava e acentuava dependência. Quanto mais se tomava mais se desejava tomar... 


Os “Medicine Shows” eram, também, mais sofisticados no seu conteúdo. Embora continuassem, muitas vezes, a recorrer à velha figura do “coloured white”, não tinham um cariz tão racista como o dos seus antepassados “Minstrels”.

Nos seus espetáculos não havia apenas música, dança e humorismo, como nos “Minstrel Shows”, mas sim exibições mais completas de partes de peças teatrais populares à época, mágicos, prestidigitadores, ventríloquos, contorcionistas, trapezistas e malabaristas de toda a espécie, numa lógica já muito próxima do espetáculo de Circo,  em exibições que chegavam a durar mais de duas horas. Quase sempre de noite e iluminadas com tochas de querosene, razão pela qual o trajeto dos “Medicine” era também designado por “kerosene circuit”...

No intervalo entre cada uma destas atuações subia ao palco o “Doutor” com a sua cartola, o qual, com um discurso inflamado e chamando muitas vezes  a testemunhar  pessoas que já teriam comprovado o extraordinário sucesso dos “tratamentos”, apresentava o produto ou produtos que tinha para vender, preparando o público para o “grand finale” que era a venda e o “show” de encerramento.  

Para quem assistia não havia muita coisa a perder, porque pagar bilhete por um espetáculo ou comprar um frasco de “snake oil” era indiferente, com a vantagem deste espetáculo ser muito mais atrativo e variado. E o que atrás se disse em relação aos “Minstrel Shows” também é válido para os “Medicine”:  para a população local, esta era uma das raras oportunidades que tinha para contactar com outras terras e outras gentes…

Consoante o potencial para o negócio da região onde se instalavam, estes “Medicine Shows” podiam ficar mais ou menos tempo…

Em regra enviavam sempre alguém com antecedência para colar cartazes a avisar a população da sua chegada e depois podiam ficar instalados no mesmo lugar até mais de um mês, consoante as perspetivas de negócio.

Durante esse período socializavam, estabeleciam contacto com as populações a aprendiam novas canções e novas danças, que depois levavam para as outras regiões onde prosseguiam o seu negócio, tendo, desta forma, a possibilidade de apresentar sempre repertório nunca visto e ouvido

Numa época onde ainda não havia rádio nem gravações discográficas, esta era uma das poucas alternativas que existiam para a transmissão oral das canções de umas regiões para outras, e do mundo rural  para as grandes cidades, onde eram, muitas das vezes, ouvidas pela primeira vez.

Era, também, habitual os mais importantes “Medicine Shows” distribuírem, gratuitamente ou a um preço muito simbólico, folhetos publicitários onde constavam as vantagens dos produtos vendidos, o programa dos espetáculos e as letras de algumas das canções  apresentadas.

Uma das mais importantes “troupes” de “Medicine Show”, a “Hamlin´s Wizard Oil Company”, editou um “booklet” com as letras de 63 canções, a que deu o pomposo nome de “Humorous and Sentimental Songs as Sung Throughout the United States by Hamlin’s Wizard Oil Concert Troupes in Their Open Air Advertising Concerts”. Deixo-vos a fotografia da capa.

Mas, para além da curiosidade, pouco interessa o nome… O importante é que chegavam a andar em viagem pelos Estados Unidos 100 “troupes Wizard” em simultâneo, o que representava um enorme potencial de divulgação da Música, quer através dos espetáculos quer também, e muito, através desses livrinhos, a que muitas vezes se chamavam “Songsters”.

Como já vos dei a entender, nos “Medicine Shows” havia desde a “mercearia da esquina” até às grandes superfícies, ou seja, desde uma ou duas pessoas que viajavam na sua carroça até às enormes “troupes” com grandes carruagens e palco próprio.


Acabei de vos falar da “Wizard Oil”, uma das maiores, mas grandes foram, também, “The Quaker Medicina Company” e, sobretudo, a “Kickapoo Indian Medicine Company”, que garantia que os seus produtos eram muito antigas e secretas receitas índias e que organizavam os seus espetáculos em torno dessa imagética: tendas índias, atores vestidos de índios, simulacros de danças e cerimónias índias, assaltos a caravanas, etc.

Com a entrada no Séc. XX,  e perante crescentes notícias de ocorrência de doenças muito graves e até de mortes devido a ingerência destes produtos, o Governo Federal reforçou a legislação tendente à proteção do Consumidor, como foi o caso do “Pure Food and Drug Act, de 1906. Esta nova legislação, por um lado,  e a progressiva introdução de sistemas de venda através do Correio, por outro, foram um duro golpe para os “Medicine Shows”, que entraram em declínio, embora alguns tenham sobrevivido até aos anos 50.

E nas primeiras décadas do século passado ainda  passou por esses espetáculos gente que acabaria por se tornar muito importante na história da Música na América: Jimmie Rogers, o futuro “singing brakeman”, Gene Audry, o “singing cowboy”, Bob Willis, o “King of western swing”,  Roy Acuff, o “King of Country Music” e até um muito jovem Hank Williams são, apenas, alguns exemplos.  

E se vos contei que no Séc. XX tinha havido homenagens aos “Minstrels”, os “Medicine” não lhe ficam atrás. Uma das bandas “Country/Folk” mais populares nos Estados Unidos, nos dias de hoje, é de Nashville e chama-se, precisamente, “Old Crow Medicine Show”...

E com esta me vou, que já é hora.   

Mas fiquem descansados… Se esta mistela que hoje vos dei a beber não vos fizer nenhum bem, mal também não fará, certamente.

E a  verdade é que a grande História da Música na América também é feita de pequenas histórias, como estas...   

PS:

Este CD que vos mostro contém músicas de “Medicine Shows” gravadas nas décadas de 20 e 30 do século passado.

A fotografia, no entanto, é de 1895, e acaba por representar as duas figuras do “Dandy”, de chapéu de coco, e do “pobre Negro”, de que vos falei no texto.

Parte das informações que vos dei foram retiradas do livro que acompanha o CD. 

Texto de Luís Miguel Mira

3 comentários:

Seve disse...

Mas sabes ó Sammy quase tudo isto se poderia ter passado no Alentejo durante os primeiros cinquenta anos do século XX, só que em vez de pretos havia pobres e a outra meia dúzia de brancos (os ricos) que os amachucavam.

Sammy, o paquete disse...

Caro Seve,
Este texto do Luís Miguel Mira é um divertimento puro.
Todos os seus textos revelam um gosto pela cultura americana, principalmente no que toca à música, ao cinema, à literatura, que não encontram por aí paralelo, apesar de suspeito na matéria, sabendo do que falo, arrisco a afirmação.
Já publicou um livro e estes textos que por aqui vão aparecendo, mais não são do que prolegómenos para um outro livro.
Diverti-me bastante e acabei comovido com a sua leitura, porque se para si a história lhe lembrou o Alentejo, para mim lembrou-me tardes na Rua Barros Queiroz, em Lisboa, miúdo-quase-adolescente que era, assistindo a este circo de banha-da-cobra e em que aparecia sempre alguém a murmurar «não quer camisas-de-vénus?».
Essas tardes terminavam com um capilé com soda, casquinha de limão, gostosura da minha infância, na ginginha ao lado das «Berlengas», que hoje é um Hostel.
Que mais se pode pedir a um cronista?

Seve disse...

É realmente um belo texto do Luís Miguel Mira, e belas fotos.