Quando eu vivia no Campo Pequeno, mesmo defronte do
jardim, costumava assistir às exibições dos vendedores de “banha de cobra” que
por lá passavam.
O esquema era sempre o mesmo. Chegavam com o seu grande
malão, escolhiam um local estratégico e faziam-se anunciar. As pessoas
aproximavam-se e rapidamente se formava um círculo em volta do vendedor, que
iniciava, então, a sua preleção.
Eu era miúdo de 7 ou 8 anos, e com facilidade arranjava
sempre um lugar de primeira fila.
Um dia um desses vendedores chamou-me para o ajudar.
A medo, lá avancei para o meio do círculo, para junto
dele. Não me lembro de tudo nem sequer do que ele vendia, mas lembro-me
perfeitamente que, a determinada altura, me pôs um saco preto nas mãos e me
disse: “agora abre a boca o mais possível”…
Eu, é claro, abri a minha pequena boca o mais que podia e
a multidão desatou a rir à gargalhada.
“Não é a tua boca, rapaz!”, disse o vendedor, “é
a do saco”…
Ora se eu nem sequer sabia que um saco tinha boca, como é
que a poderia abrir…?
É claro que tudo isto era estudado pelo vendedor e ele
sabia muito bem o bom impacto que esta graçola tinha na assistência. Já
devia ter feito esta cena com dezenas de miúdos e sabia que a reação deles era
sempre a mesma, ou seja, abrir a própria boca…
Mas eu não me ralei nada porque, imaginem, depois de no
final ter concretizado todas as suas vendas, o homem deu-me uma moeda de vinte
e cinco tostões!
Ora vinte e cinco tostões, meus amigos, era algo que
nunca antes tinha sentido na palma da minha mão… Uma pequena fortuna…!
Comprei gelados, rebuçados, chupa-chupas,
pastilhas-elásticas, bonecos da bola e o dinheiro não se esgotava...
É claro que, a partir daí, ainda mais “à coca” ficava e
sempre que chegava um novo vendedor ao jardim, aí estava eu na primeira fila à
espera de ser chamado para trabalhar…
A verdade é que nunca mais aconteceu e esta minha
carreira de artista ambulante foi de muito curta duração.
Mas agora perguntarão vocês: que raio de banha de
cobra é que este gajo se prepara para nos impingir hoje, com toda esta
conversa…?
Vou falar-vos da importância dos vendedores de
“banha de cobra” na difusão da “Folk Music” ou, se preferirem um conceito mais
genérico, da música tradicional nos Estados Unidos.
A esses vendedores, que impingiam a um público crédulo e
ignorante poções milagrosas como “snake oil”, “wizard oil”
e outras coisas afins à base de ópio, morfina, cocaína e álcool, dava-se,
então, o pomposo nome de “Medicine Shows”.
Mas antes de vos falar deles convém apresentar, primeiro,
os chamados “Minstrel Shows”, já que a forma de atuação destes constituiu, de
certa modo, uma inspiração para os “Medicine Shows”.
Os “Minstrel Shows” são um espetáculo que teve a sua
origem na Europa e foi introduzido nos Estados Unidos, com algumas
adaptações, através dos bares, tabernas e teatros de Nova Iorque, nos
inícios do Séc. XIX.
Com o progresso das vias de comunicação, daí partiram, de
uma forma itinerante, para todo o território, em especial para o longínquo
Oeste, podendo ser considerados como uma das primeiras formas de entretenimento
popular tipicamente americanas.
Mantiveram-se em atividade até aos inícios do Séc. XX,
embora tivessem o seu período áureo até ao início da Guerra de Secessão.
Entraram em acentuado declínio após o final da Guerra, tendo sido
progressivamente substituídos pelas “troupes” de “Vaudeville” e pelos referidos
“Medicine Shows”.
Os “Minstrel Shows” são um misto de espetáculo
cómico e de espetáculo de dança e musical, e caracterizavam-se pela presença de
um ou mais atores brancos com a cara pintada de preto, mantendo, apenas, uma
pequena faixa branca em torno dos olhos e da boca. Quem se lembrar de Al Jolson
em “The Jazz Singer”, primeiro filme falado da História do Cinema, percebe bem
aquilo a que me estou a referir.
Este “shows”, que durante algumas décadas percorreram o
território dos Estados Unidos de lés a lés com “troupes” de diferente
dimensão, tiveram aspetos positivos e outros francamente negativos.
Um dos aspetos positivos foi o de manterem os territórios
em contacto, já que iam aos lugares mais recônditos e, para muito boa gente,
este era o único contacto regular que podiam manter com gente vinda do do
exterior.
Outro aspeto relevante foi a difusão da Música de umas
regiões para outras. A determinada altura da sua existência estes “shows”
eram tão importantes que até compositores de prestígio como Stephen Foster,
considerado o Pai da Música Popular Americana, escreviam músicas que lhes eram
destinadas, e clássicos da “Folk Music” como “Oh! Susanna”, “Campdown Races” e
“My Old Kentucky Home” vieram à luz nesses dias e nesse contexto. E até
“Dixie”, o hino dos Confederados, deve a sua origem aos “Minstrel Shows”.
Como aspeto francamente negativo fica a triste imagem que
estes espetáculos deixavam do Negro americano e o evidente racismo de que se
revestiam. Se sempre existiu e continua a existir um profundo racismo na
Sociedade americana, os “Minstrel Shows” têm, seguramente, a sua quota-parte de
responsabilidade histórica, porque foram eles quem, durante décadas, ajudaram a
consolidar essa imagem junto de uma vastíssima audiência Branca. As
estátuas de “Minstrels” que se ponham a pau, portanto...
Um espetáculo de “Minstrel” era, geralmente, dividido em
três partes: uma primeira parte de dança e canções, com algumas graçolas pelo
meio; uma segunda parte assente num discurso satírico alusivo a acontecimentos
da época; um terceira e última parte de representação teatral de cariz popular
e humorístico, com cenas quase sempre passadas nas plantações, opondo um Negro
a um Branco.
A lógica desta terceira parte do espetáculo era algo
semelhante à do palhaço rico “versus” palhaço pobre, do Circo, em que o
primeiro humilha o segundo, para deleite da assistência.
O palhaço rico era aqui o “Dandy”, muitas vezes associado
a alguém do Norte, ao capataz ou mesmo ao próprio proprietário das plantações
rurais.
O palhaço pobre era o Negro, quase sempre representado,
de uma forma estereótipada, como alguém infantil, simpático mas preguiçoso,
pouco inteligente e demasiado dado à bebida, à dança e à cantoria. E esta
última parte acabava sempre com o Negro a sapatear e a cantar umas
músicas que se pretendia fazer crer que era a verdadeira Música Negra, mas que
era, na maioria dos casos, uma mera mistificação.
A maior parte destes espetáculos fazia uma apologia da
escravatura. A ideia que transmitiam era que o Negro era bem tratado nas
plantações e era aí que ele se sentia bem e desejava permanecer.
Com o final da Guerra da Secessão este discurso começava
a não fazer muito sentido mas, curiosamente, muitos foram os Negros libertos no
final da Guerra que, à falta de melhor ocupação, optaram por integrar este tipo
de espetáculos. Pintavam-se de branco à volta dos olhos e da boca, como quem
emita homem branco a disfarçar-se de negro...
O tom paródico dos espetáculos manteve-se, o discurso
racista atenuou-se um pouco e os negros até trouxeram consigo para os
“Minstrels” as suas músicas autênticas, que não tardaram a tornar-se património
da Música Tradicional Americana, como é o caso de “Frankie and Albert”, “The
Boll Weevil” ou “The Blue-Tail-Fly”.
Como sempre sucede neste tipo de espetáculos, a dimensão
e a ambição dos “Shows” era muito diferente, desde uma simples carroça com duas
pessoas até uma ou mais carruagens com os artistas e o respetivo equipamento.
Mas o mais habitual era serem, apenas, entre quatro a 6 elementos.
Também a localização do espetáculo variava em função da
ambição e dos meios de cada um: uma sala de espetáculos alugada para os mais
poderosos, com bilhetes pagos à entrada; o terreiro da aldeia para outros, com
recolha de uma moedinha com o chapéu no final do espetáculo…
Resta reforçar, para concluir, a ideia de que alguns
destes grupos de “Minstrels” atingiram uma enorme projeção a nível nacional. É
o caso , por exemplo, dos “The Virginia Minstrels”, que integravam o compositor
Dan Emmett, autor de “Dixie”, ou dos “Christy Minstrels”, cujo nome não contém
qualquer conotação religiosa, mas antes se refere a Edwin Pearce Christy, o seu
“leader”. Estes “Christy Minstrels” eram tão importantes no seu tempo que
fizeram acordos de exclusividade com Stephen Foster, o compositor de “Oh!
Susanna” de que já atrás vos falei, para algumas das suas canções.
E como isto anda sempre tudo ligado, por ocasião do “Folk
Revival” dos ano 60 estes “Christy Minstrels” viriam a ser homenageados por um
grupo “Folk” que se chamou “The New Christy Minstrels”. Era um grupo muito
grande de onde estavam sempre a sair uns e a entrar novos elementos, e pelo
qual passou gente de nomeada como Randy Sparks, o fundador, Barry McGuire, John
Denver, Kenny Rogers, Gene Clark ou Roger McGuin.
E de “Minstrel Shows”, por hoje, já
chega...
Passemos, então, aos “Medicine Shows”.
Como é sabido, o discurso Humanista dos dirigentes do
Norte no que respeita à escravatura ocultava uma outra realidade, que era a de
um Sistema Capitalista que já não aguentava ficar confinado a algumas centenas
de grandes consumidores nos estados do Sul, mas antes necessitava de uma enorme
extensão de pequenos consumidores para poder alargar os seus tentáculos…
O Norte industrializado olhava para os Estados do Sul,
predominantemente rurais, como potenciais clientes para os seus produtos, e
para a vastíssima mão-de-obra escrava como potenciais consumidores.
Enquanto escravos não remunerados não teriam essa
possibilidade, mas um enorme exército de pequenos trabalhadores rurais, mesmo
mal remunerados mas podendo comprar a crédito, já seria muito bem
visto...
O surgimento dos “Medicine Shows” nas décadas que se
seguiram ao final da Guerra da Secessão insere-se, assim, nessa lógica de
expansão de um pequeno capitalismo.
Na sua essência e itinerância, os “Medicine Shows”
eram semelhantes aos “Minstrel Shows”, mas em lugar de venderem um bilhete para
um espetáculo, vendiam um produto.
Vendiam, é claro, gato por lebre, óleos de cobra ou de
lagarto que, segundo eles, tinham a particularidade de serem bons para todos as
maletas de que as pessoas padecessem, fosse elas quais fossem. “Good for
what ails you”, que era uma das expressões publicitárias mais utilizadas na
época.
Feitos à base de ópio, morfina, cocaína e álcool, estes
“elixires milagrosos” deixavam a quem os tomava uma sensação de bem estar, ao
mesmo tempo que gerava e acentuava dependência. Quanto mais se tomava mais se
desejava tomar...
Os “Medicine Shows” eram, também, mais sofisticados no
seu conteúdo. Embora continuassem, muitas vezes, a recorrer à velha figura do
“coloured white”, não tinham um cariz tão racista como o dos seus antepassados
“Minstrels”.
Nos seus espetáculos não havia apenas música, dança e
humorismo, como nos “Minstrel Shows”, mas sim exibições mais completas de
partes de peças teatrais populares à época, mágicos, prestidigitadores,
ventríloquos, contorcionistas, trapezistas e malabaristas de toda a espécie,
numa lógica já muito próxima do espetáculo de Circo, em exibições que
chegavam a durar mais de duas horas. Quase sempre de noite e iluminadas com
tochas de querosene, razão pela qual o trajeto dos “Medicine” era também
designado por “kerosene circuit”...
No intervalo entre cada uma destas atuações subia ao
palco o “Doutor” com a sua cartola, o qual, com um discurso inflamado e
chamando muitas vezes a testemunhar pessoas que já teriam
comprovado o extraordinário sucesso dos “tratamentos”, apresentava o produto ou
produtos que tinha para vender, preparando o público para o “grand finale” que
era a venda e o “show” de encerramento.
Para quem assistia não havia muita coisa a perder, porque
pagar bilhete por um espetáculo ou comprar um frasco de “snake oil” era
indiferente, com a vantagem deste espetáculo ser muito mais atrativo e variado.
E o que atrás se disse em relação aos “Minstrel Shows” também é válido para os
“Medicine”: para a população local, esta era uma das raras oportunidades
que tinha para contactar com outras terras e outras gentes…
Consoante o potencial para o negócio da região onde se
instalavam, estes “Medicine Shows” podiam ficar mais ou menos tempo…
Em regra enviavam sempre alguém com antecedência para
colar cartazes a avisar a população da sua chegada e depois podiam ficar
instalados no mesmo lugar até mais de um mês, consoante as perspetivas de
negócio.
Durante esse período socializavam, estabeleciam contacto
com as populações a aprendiam novas canções e novas danças, que depois levavam
para as outras regiões onde prosseguiam o seu negócio, tendo, desta forma, a
possibilidade de apresentar sempre repertório nunca visto e ouvido
Numa época onde ainda não havia rádio nem gravações
discográficas, esta era uma das poucas alternativas que existiam para a
transmissão oral das canções de umas regiões para outras, e do mundo
rural para as grandes cidades, onde eram, muitas das vezes, ouvidas pela
primeira vez.
Era, também, habitual os mais importantes “Medicine
Shows” distribuírem, gratuitamente ou a um preço muito simbólico, folhetos
publicitários onde constavam as vantagens dos produtos vendidos, o programa dos
espetáculos e as letras de algumas das canções apresentadas.
Uma das mais importantes “troupes” de “Medicine Show”, a
“Hamlin´s Wizard Oil Company”, editou um “booklet” com as letras de 63 canções,
a que deu o pomposo nome de “Humorous and Sentimental Songs as Sung Throughout
the United States by Hamlin’s Wizard Oil Concert Troupes in Their Open Air
Advertising Concerts”. Deixo-vos a fotografia da capa.
Mas, para além da curiosidade, pouco interessa o nome… O
importante é que chegavam a andar em viagem pelos Estados Unidos 100 “troupes
Wizard” em simultâneo, o que representava um enorme potencial de divulgação da
Música, quer através dos espetáculos quer também, e muito, através desses
livrinhos, a que muitas vezes se chamavam “Songsters”.
Como já vos dei a entender, nos “Medicine Shows” havia
desde a “mercearia da esquina” até às grandes superfícies, ou seja, desde uma
ou duas pessoas que viajavam na sua carroça até às enormes “troupes” com
grandes carruagens e palco próprio.
Acabei de vos falar da “Wizard Oil”, uma das maiores, mas
grandes foram, também, “The Quaker Medicina Company” e, sobretudo, a “Kickapoo
Indian Medicine Company”, que garantia que os seus produtos eram muito antigas
e secretas receitas índias e que organizavam os seus espetáculos em torno dessa
imagética: tendas índias, atores vestidos de índios, simulacros de danças e
cerimónias índias, assaltos a caravanas, etc.
Com a entrada no Séc. XX, e perante crescentes
notícias de ocorrência de doenças muito graves e até de mortes devido a
ingerência destes produtos, o Governo Federal reforçou a legislação tendente à
proteção do Consumidor, como foi o caso do “Pure Food and Drug Act, de 1906.
Esta nova legislação, por um lado, e a progressiva introdução de sistemas
de venda através do Correio, por outro, foram um duro golpe para os “Medicine
Shows”, que entraram em declínio, embora alguns tenham sobrevivido até aos anos
50.
E nas primeiras décadas do século passado ainda
passou por esses espetáculos gente que acabaria por se tornar muito importante
na história da Música na América: Jimmie Rogers, o futuro “singing brakeman”,
Gene Audry, o “singing cowboy”, Bob Willis, o “King of western swing”,
Roy Acuff, o “King of Country Music” e até um muito jovem Hank Williams são,
apenas, alguns exemplos.
E se vos contei que no Séc. XX tinha havido homenagens
aos “Minstrels”, os “Medicine” não lhe ficam atrás. Uma das bandas
“Country/Folk” mais populares nos Estados Unidos, nos dias de hoje, é de
Nashville e chama-se, precisamente, “Old Crow Medicine Show”...
E com esta me vou, que já é hora.
Mas fiquem descansados… Se esta mistela que hoje vos dei
a beber não vos fizer nenhum bem, mal também não fará, certamente.
E a verdade é que a grande História da Música na
América também é feita de pequenas histórias, como estas...
PS:
Este CD que vos mostro contém músicas de “Medicine Shows”
gravadas nas décadas de 20 e 30 do século passado.
A fotografia, no entanto, é de 1895, e acaba por
representar as duas figuras do “Dandy”, de chapéu de coco, e do “pobre Negro”,
de que vos falei no texto.
Parte das informações que vos dei foram retiradas do
livro que acompanha o CD.
3 comentários:
Mas sabes ó Sammy quase tudo isto se poderia ter passado no Alentejo durante os primeiros cinquenta anos do século XX, só que em vez de pretos havia pobres e a outra meia dúzia de brancos (os ricos) que os amachucavam.
Caro Seve,
Este texto do Luís Miguel Mira é um divertimento puro.
Todos os seus textos revelam um gosto pela cultura americana, principalmente no que toca à música, ao cinema, à literatura, que não encontram por aí paralelo, apesar de suspeito na matéria, sabendo do que falo, arrisco a afirmação.
Já publicou um livro e estes textos que por aqui vão aparecendo, mais não são do que prolegómenos para um outro livro.
Diverti-me bastante e acabei comovido com a sua leitura, porque se para si a história lhe lembrou o Alentejo, para mim lembrou-me tardes na Rua Barros Queiroz, em Lisboa, miúdo-quase-adolescente que era, assistindo a este circo de banha-da-cobra e em que aparecia sempre alguém a murmurar «não quer camisas-de-vénus?».
Essas tardes terminavam com um capilé com soda, casquinha de limão, gostosura da minha infância, na ginginha ao lado das «Berlengas», que hoje é um Hostel.
Que mais se pode pedir a um cronista?
É realmente um belo texto do Luís Miguel Mira, e belas fotos.
Enviar um comentário