sexta-feira, 26 de junho de 2020

OLHAR AS CAPAS


Lillias Fraser

Hélia Correia
Capa: Fernando Mateus
Relógio D’Água, Lisboa Junho de 2001

Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais tarde. Atravessado por baionetas, de modo que os buracos na barriga vertiam sangue, bílis, e excrementos. Tom Fraser estava em pé, tapando a entrada, espalhando como sempre a escuridão. Ela pensou que aquilo que tanto o feria era o surpreendê-la adormecida na cama de madeira, que se usava somente em três momentos de uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e falecer. O pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes arruivadas. Lillias queria esconder-se, mas sabia que um pecado de filha nunca mais desapareceria da visão de um pai. Arremeteu-lhe contra as pernas e passou pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso lhe dava qualidades de animal. A sua camisinha esvoaçava como penugem ao sabor da ventania, enquanto ela corria e se afastava cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda nada sucedera.

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