Lillias Fraser
Hélia Correia
Capa: Fernando
Mateus
Relógio D’Água,
Lisboa Junho de 2001
Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas
antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais
tarde. Atravessado por baionetas, de modo que os buracos na barriga vertiam
sangue, bílis, e excrementos. Tom Fraser estava em pé, tapando a entrada,
espalhando como sempre a escuridão. Ela pensou que aquilo que tanto o feria era
o surpreendê-la adormecida na cama de madeira, que se usava somente em três
momentos de uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e
falecer. O pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes
arruivadas. Lillias queria esconder-se, mas sabia que um pecado de filha nunca
mais desapareceria da visão de um pai. Arremeteu-lhe contra as pernas e passou
pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso lhe dava qualidades de animal.
A sua camisinha esvoaçava como penugem ao sabor da ventania, enquanto ela
corria e se afastava cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda
nada sucedera.
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