segunda-feira, 1 de junho de 2020

CONVERSANDO


Há livros únicos. Por isto e por aquilo.

O livro do Dinis Machado, O Que Diz Molero, é um desses livros.

Um êxito inultrapassável que paralisou, imobilizou, o autor, no fundo dos fundos o grande projecto que ele tinha de escrever um livro memorável.

Conseguiu.

Dinis Machado já tinha andado em aquecimento com três policiais com a assinatura de Dennis McShade, a que pouca gente não deu a necessária atenção, talvez por serem romances policiais. E de repente salta este Molero escrito com um sentimento de puro arraso, uma infinita ternura pelas palavras.

Depois deste livro, escreveu outros, não muitos, mas longe deste grande mergulho no mar da loucura daquele final de década de 70


O Helder Pinho, brilhante repórter, desde o seu 1º número, de A Capital, andava com um exemplar dentro do bolso, largamente riscado e anotado. Sempre que chegava ao café, olhava a malta, sacava do livro e lia uma citação e a conversa alongava-se. Dizia ele que cada um lê um livro com os olhos que tem, ou seja, lê-o a sua maneira e rematava que o livro nascera no sótão da infância do Dinis (os cigarros fumados às escondidas, meter golos com a trapeira nas janelas da vizinhança, os concursos para ver quem mijava mais longe, as alcunhas, os concertos das campaínhas dos prédios), um livro que só poderia ser escrito em Lisboa e por quem a conhece muito bem, por dentro e palmo a palmo.

Foi Luiz Pacheco quem abriu as hostilidades, que escreve uma crítica ao livro com expressões como «um livro-bomba, uma obra d’arromba, uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular da malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata.»

E Eugénio de Andrade que não se metia nestas coisas apareceu a dizer: «Este livro é uma alegria» e a frase foi logo apanhada para as badanas do livro.

O meu Molero não está tão anotado como o do Helder, mas está bem riscadinho e, volta e meia, pego-lhe.

Este pedacinho é da página 26:

«O que poderá levar um homem a destravar uma cadeira de rodas?, perguntou Mister De Luxe num tom de voz muito baixo. «A monotonia, a solidão, os sonhos espremidos até ao osso, o falhado desejo louco de correr até o coração saltar pela boca», sugeriu DeLuxe, «acho que é  cadeira de rodas, ela mesmo».

Falta a gargalhada do Helder, a sua loucura, o momento em que depois sorria sorriria e logo percorreria outras passagens, acompanhadas por uma filosofia resplandecente de ternura, tudo isto no «país de cristal, os momentos da nossa inocência perdida.»

Legenda: cartaz da adaptação teatral de Nuno Artur Silva do livro de Dinis Machado.

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