segunda-feira, 1 de junho de 2020

OLHAR AS CAPAS


O Jogo das Contas de Vidro

Hermann Hesse
Tradução: Carlos Leite
Colecção: Ficção Universal nº 49
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2003

Ergueu-se, foi à janela e olhou para o céu: por entre as nuvens que passavam, apareciam em todo o lado nesgas de céu profundo e límpido, semeado de estrelas. Como não regressasse imediatamente, o seu convidado ergueu-se e também foi ter com ele à janela. O Magister continuava de pé, a olhar para o céu e saboreando em grandes haustos ritmados o ar fresco e leve daquela noite de Outono. Apontou para o céu com a mão.
- Olha – disse – para esta paisagem de nuvens com os seus fiapos de azul! À primeira vista poder-se-ia julgar que as profundezas são nos sítios onde a noite é mais escura, mas vemos logo que esta escuridão sem resistência é feita apenas de nuvens e que as grandes funduras do espaço cósmico começam somente na borda e nos fiordes desses maciços de bruma… Aí, mergulham no infinito, onde brilham solenemente as estrelas, símbolos supremos para nós, humanos, da clareza e da ordem, As profundezas do mundo e dos seus segredos não se encontram onde estão as nuvens e as trevas: o seu fundo está na clareza e na serenidade. Permite-me que te faça um pedido: antes de ires deitar-te, olha por um momento para aqueles golfos e aqueles estreitos com todas as suas estrelas, e não expulses os pensamentos ou os sonhos que possam vir-te.
Plínio sentiu uma palpitação singular no coração, não soube se de dor ou de alegria. Fora com palavras análogas, lembrava-se, que outrora, em tempos infinitamente longínquos, na bela serenidade dos seus inícios de aluno em Waldzell, o tinham exortado aos seus primeiros exercícios de meditação.
- E permite-me que acrescente uma palavra – prosseguiu o Mestre das Contas de Vidro em voz baixa. – Gostaria de te dizer ainda alguma coisa sobre a serenidade das estrelas e do espírito, e também da que nos é própria, em Castália. Tens aversão à serenidade, provavelmente porque a via que tiveste de seguir era a da tristeza.

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