Há coisas que estão mal pensadas desde o início.
Uma delas é o mundo. Não é que lhe falte alguma coisa,
é que lhe sobram, por exemplo, as elegias, os ruídos,
ao arrais da economia, a gestão dos escorregas.
Fica-lhe mal ser destruído por obuses de cimento,
nada ganha com o medo, a cratera do progresso,
o zapping dos afectos, as obras completas de Napoleão.
Não era necessário tanto ouro no caminho do arado,
tantas horas de alumínio por semana. E das praias,
que dizer? que dizer das guilhotinas, do terror
alimentado pelos sonhos? Em resumo: não aprovo
os circuitos de extermínio, o estilo Faetonte de cair.
Foi pena não podermos escolher. Preferia que restassem
as maçãs, os verdes de Vuillard, o selim de Monteverdi,
a palha de centeio nos eirados. Sem a trova dos astutos
poderíamos viver, mas não sem o labor dos pintassilgos,
quando a tarde se despede para sempre, e a luz entreabaerta
por um livro corre fulva pelo quarto como um gato
a meio de junho. Recebesse eu as notícias do meu rosto
pelo rosto dos amigos e ficassem as colinas, mais o cheiro
dos teus ombros quando chegas do trabalho e me perguntas
«há batatas cá em casa? trouxe vinho e cogumelos».
Nestas ervas, não em outras, gostaria
De deixar cair os punhos, esquecer como se reza.
José Miguel Silva em Os Cem Melhores Poemas Portugueses
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