sábado, 13 de fevereiro de 2021

ÚLTIMAS VONTADES

Há coisas que estão mal pensadas desde o início.

Uma delas é o mundo. Não é que lhe falte alguma coisa,

é que lhe sobram, por exemplo, as elegias, os ruídos,

ao arrais da economia, a gestão dos escorregas.

Fica-lhe mal ser destruído por obuses de cimento,

nada ganha com o medo, a cratera do progresso,

o zapping dos afectos, as obras completas de Napoleão.

Não era necessário tanto ouro no caminho do arado,

tantas horas de alumínio por semana. E das praias,

que dizer? que dizer das guilhotinas, do terror

alimentado pelos sonhos? Em resumo: não aprovo

os circuitos de extermínio, o estilo Faetonte de cair.

 

Foi pena não podermos escolher. Preferia que restassem

as maçãs, os verdes de Vuillard, o selim de Monteverdi,

a palha de centeio nos eirados. Sem a trova dos astutos

poderíamos viver, mas não sem o labor dos pintassilgos,

quando a tarde se despede para sempre, e a luz entreabaerta

por um livro corre fulva pelo quarto como um gato

a meio de junho. Recebesse eu as notícias do meu rosto

pelo rosto dos amigos e ficassem as colinas, mais o cheiro

dos teus ombros quando chegas do trabalho e me perguntas

«há batatas cá em casa? trouxe vinho e cogumelos».

Nestas ervas, não em outras, gostaria

De deixar cair os punhos, esquecer como se reza.

 

José Miguel Silva em Os Cem Melhores Poemas Portugueses

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