domingo, 7 de fevereiro de 2021

MOSCAVIDE, AOS DOMINGOS

Naqueles anos 60, pelas tardes de domingo, na Praça do Chile, apanhavam-se aqueles autocarros verdes de dois andares, e ia-se às tascas de Moscavide comer filetes de bacalhau, berbigões, moelas estufadas, bifanas a nadarem em molhanga.

Por vezes, depois dos comes-e-bebes, íamos para o Aeroporto da Portela ver os aviões chegarem, ver os aviões partirem.

Em Moscavide, que já não tem nada a ver com a outra, a última vez que por lá passei,  um ror de anos, já não havia tascas, apenas snacks, um homem de 76 anos, ex-combatente da guerra em Angola, pela tarde de 25 de Julho do passado ano, matou o negro Bruno Candé, actor de teatro.

Numa rua movimentada, após uma discussão por causa da cadela de Candé, o ex-combatente correu a casa buscar uma arma e desfechou cinco tiros sobre o actor. À polícia, disse que, no meio da discussão, Candé lhe lançou um riso em tom de gozo.

As últimas notícias davam-no como não estar arrependido do crime que cometeu. Quando entrou na prisão terá dito; «Em Angola, matei vários como este.»

Testemunhas contaram que há algum tempo o criminoso andava a insultar Candé: «Volta para a tua terra.»

Será julgado por homicídio qualificado, posse de arma ilegal, que terá siso roubada, nos anos 90, à PSP.

O actor Bruno Candédeixou três filhos menores.

Nunca acompanhámos os combatentes das guerras coloniais.

Como partiram... como chegaram…

Há dias, publicou-se aqui no Cais, um Postal Sem Selo: mostrava a fotografia de uma manifestação de Deficientes da Guerra Colonial, a que se juntou uma frase de António Lobo Antunes:

 Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.

Toda uma juventude serviu de carne para canhão para defender o que nem sequer era nosso.

O Jorge de Sena tem um poema, simplesmente arrepiante, que marca o quanto foi possível aqueles ditadores de pacotilha terem resistido tanto tempo:

«Uma vez eu, chegando a Portugal
após muitos anos de ausência minha e alguns
de guerras africanas, encontrei uma vizinha
muito estimável que era casada com
um operário categorizado e antigo republicano.
O filho dela estava nas Africas, arriscando
a vida dele e a dos outros em defesa
do património da pátria de alguns (muito mais
que das gerações brancas que vivem nas Áfricas).
Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas.
E ela, com um sorriso resignado, respondeu-me:
- Pois é, mas ele está a ganhar tão bem!»

Foram apenas carne de canhão.

Regressados, cada um que se amanhasse, ficassem com os seus traumas de guerra, tivessem noites sem dormir, ou noites repletas de pesadelos, o acordarem sobressaltados a ouvirem tiros, o lembrar dos companheiros mortos, que transportassem no seu quotidiano o ódio e a raiva que podem levar ao assassínio de um negro por um simples riso entendido como gozo.

4 comentários:

Seve disse...

Tenho ouvido e lido tantas versões sobre o assassínio do Bruno Candé que não sei se essa história de apenas um riso em tom de gozo terá sido só assim; ó Sammy sabe que esta coisa do politicamente correcto tem que se lhe diga, seja pró preto seja pró branco...

De qualquer maneira nada mas mesmo nada justifica a perda de um VIDA humana!

Sammy, o paquete disse...

Pense-se o que se pensar sobre o assassínio de Bruno Candé, a frase do Seve «nada, mas mesmo justifica a perda de uma vida humana», resume aquilo que interessa na abordagem deste texto. Contudo,o que muitas vezes não é referido é o que ressalta da vida de uma grande parte dos ex-combatentes após o regresso de África. A certeza que não estávamos preparados para tratar de um assunto tão complexo, quase trágico, revela-se no comportamento do ex-combatente que mata Baldé.

Seve disse...

E acredite Sammy que a maioria deles eram uns miúdos que choraram quando viram morrer ao seu lado miúdos como eles e transidos de pavor os viam a delirar cheios de sangue feridos de morte, alguém se preocupou com eles quando regressaram...

Sammy, o paquete disse...

Lembrei-me de uma frase do Paul Nizan:« Tinha 20 anos e não admitia que ninguém me dissesse que eram os melhores anos da minha vida.»