Naqueles anos 60,
pelas tardes de domingo, na Praça do Chile, apanhavam-se aqueles autocarros
verdes de dois andares, e ia-se às tascas de Moscavide comer filetes de
bacalhau, berbigões, moelas estufadas, bifanas a nadarem em molhanga.
Por vezes, depois dos
comes-e-bebes, íamos para o Aeroporto da Portela ver os aviões chegarem, ver os
aviões partirem.
Em Moscavide, que já
não tem nada a ver com a outra, a última vez que por lá passei, um ror de anos, já não havia tascas, apenas
snacks, um homem de 76 anos, ex-combatente da guerra em Angola, pela tarde de
25 de Julho do passado ano, matou o negro Bruno Candé, actor de teatro.
Numa rua movimentada,
após uma discussão por causa da cadela de Candé, o ex-combatente correu a casa
buscar uma arma e desfechou cinco tiros sobre o actor. À polícia, disse que, no
meio da discussão, Candé lhe lançou um riso em tom de gozo.
As últimas notícias
davam-no como não estar arrependido do crime que cometeu. Quando entrou na
prisão terá dito; «Em Angola, matei
vários como este.»
Testemunhas contaram
que há algum tempo o criminoso andava a insultar Candé: «Volta para a tua
terra.»
Será julgado por
homicídio qualificado, posse de arma ilegal, que terá siso roubada, nos anos
90, à PSP.
O actor Bruno Candédeixou três filhos menores.
Nunca acompanhámos os
combatentes das guerras coloniais.
Como partiram... como
chegaram…
Há dias, publicou-se
aqui no Cais, um Postal Sem Selo: mostrava a fotografia de uma manifestação de
Deficientes da Guerra Colonial, a que se juntou uma frase de António Lobo
Antunes:
Felizmente que a tropa há-de torná-lo um
homem.
Toda uma juventude serviu de carne para canhão para
defender o que nem sequer era nosso.
O Jorge de Sena tem um poema, simplesmente arrepiante,
que marca o quanto foi possível aqueles ditadores de pacotilha terem resistido
tanto tempo:
«Uma vez eu, chegando a Portugal
após muitos anos de ausência minha e alguns
de guerras africanas, encontrei uma vizinha
muito estimável que era casada com
um operário categorizado e antigo republicano.
O filho dela estava nas Africas, arriscando
a vida dele e a dos outros em defesa
do património da pátria de alguns (muito mais
que das gerações brancas que vivem nas Áfricas).
Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas.
E ela, com um sorriso resignado, respondeu-me:
- Pois é, mas ele está a ganhar tão bem!»
Foram apenas
carne de canhão.
Regressados, cada um que se amanhasse, ficassem com os seus traumas de guerra, tivessem noites sem dormir, ou noites repletas de pesadelos, o acordarem sobressaltados a ouvirem tiros, o lembrar dos companheiros mortos, que transportassem no seu quotidiano o ódio e a raiva que podem levar ao assassínio de um negro por um simples riso entendido como gozo.
4 comentários:
Tenho ouvido e lido tantas versões sobre o assassínio do Bruno Candé que não sei se essa história de apenas um riso em tom de gozo terá sido só assim; ó Sammy sabe que esta coisa do politicamente correcto tem que se lhe diga, seja pró preto seja pró branco...
De qualquer maneira nada mas mesmo nada justifica a perda de um VIDA humana!
Pense-se o que se pensar sobre o assassínio de Bruno Candé, a frase do Seve «nada, mas mesmo justifica a perda de uma vida humana», resume aquilo que interessa na abordagem deste texto. Contudo,o que muitas vezes não é referido é o que ressalta da vida de uma grande parte dos ex-combatentes após o regresso de África. A certeza que não estávamos preparados para tratar de um assunto tão complexo, quase trágico, revela-se no comportamento do ex-combatente que mata Baldé.
E acredite Sammy que a maioria deles eram uns miúdos que choraram quando viram morrer ao seu lado miúdos como eles e transidos de pavor os viam a delirar cheios de sangue feridos de morte, alguém se preocupou com eles quando regressaram...
Lembrei-me de uma frase do Paul Nizan:« Tinha 20 anos e não admitia que ninguém me dissesse que eram os melhores anos da minha vida.»
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