Há muito que tinha o recorte numa pasta, mas quando leu O Caçador de Histórias do Eduardo Galeano, achou um piadão que o escritor uruguaio tivesse caçado a história, lhe chamasse castigos e talvez concluísse que o decreto é mesmo uma aberração, só ao alcance de gente muito pequenina e má, gente que dirigiu os destinos do povo que somos, ou pensamos ser.
Recorda-se que num distante dia, estava na secção de
chocolates do Lidl, os chocolates
olhavam-no, ele olhava os chocolates, mas desviou completamente os olhares: o
colesterol, o sangue grosso, o raio que os parta, caminha um pouco e deu para
ouvir a conversa de duas senhoras bem entradotas:
- Uma pouca
vergonha! Não há respeito nenhum, só falta coisarem onde calhar…
O alvo da converseta eram dois jovens que se beijavam, no
meio das estantes do super quando muito bem lhes apeteceu que isso acontecesse,
as senhoras entradotas eram gente que viveu os seus desejos, se é que os
viveram…, na clandestinidade do que quer que fosse, no vão de uma escada, como
contou o poeta Manuel da Fonseca «uma vez que chovia até entrámos numa
escada, somente um beijo trocámos…»
Afastou-se de imediato, aquele «coisar» soube-lhe ao
princípio do mundo e saberia que não tardaria:
- O que faz muita
falta é um outro Salazar!...
A portaria da Câmara Municipal de Lisboa determina:
«Verificando-se o
aumento de actos atentórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm
verificando nos logradouros públicos e jardins, e, em especial, nas zonas
florestais de Montes Claros, Parque Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim
Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se à Policia e Guardas Florestais
uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações
para a prática de actos que aventem contra a moral e os bons costumes. Assim, e
em aditamento àquela Postura nº 69.035, estabelece-se e determina-se que o artº
48 tenha o cumprimento seguinte:
1º) Mão na mão: 2$50
2º) Mão naquilo: 15$00
3º) Aquilo na mão: 30$00
4º ) Aquilo naquilo: 50$00
5º ) Aquilo atrás daquilo: 100$00
Parágrafo único: com a língua naquilo:
150$00 de multa, preso e fotografado.»
Corria o ano de 1953, ele tinha 8 anos, e, hoje, sabe que
aquele foi o Portugal em que, muitos outros foram crescendo e sabe que muita
daquela gente não conseguiu ver mais além do que foi o seu limitado mundo.
Recorda-se que havia, entre rapazes e raparigas, uma distância, uma separação
absoluta. As escolas não eram mistas. Havia brincadeiras de rapazes e
brincadeiras de raparigas. Na rua os rapazes jogavam à bola, as raparigas
espreitavam-nos atrás das cortinas das janelas. As festas de aniversário,
quando as havia, eram a única hipótese da possibilidade de um pingo de convívio
e, mesmo assim, muito, muito mesmo, rigorosamente vigiado.
Foi este o Portugal de que tentámos escovar-nos e, possivelmente, sem
resultados muito claros, ou sem resultados de qualquer espécie. Esse Portugal
que o Alexandre O’Neill deixou bem retratado: «às duas por três nascemos, às duas por três morremos e a vida não a
vivemos, não somos mais que solidão e mágoa…Ó Portugal, se fosses só três
sílabas, linda vista para o mar, meu remorso, meu remorso de todos nós.»
Gentes de moral rígida, de bons comuns terão sido autores
daquele decreto, outras gentes, passados uns anos, envolveram a ditadura de
Salazar num buraco sem fim, que ficou para a história com os «ballets rose».
Gentes de moral rígida, de bons costumes, pois então!
O escândalo rebentou em 1967, em que muita rapaziada, de diversos
cargos da ditadura, participaram em orgias com crianças, também com
prostitutas: ministros, empresários, banqueiros, militares, condes, marqueses,
padres.
Quando soube, a todo o custo, Salazar tentou ocultar o escândalo.
Em Portugal, mais ou menos, conseguiu, mas Barry O’ Brien,
jornalista do Sunday Telegraph, colocou
o escândalo na praça pública internacional.
Salazar à beira de um ataque de nervos, fica a saber que
Antunes Varela, seu ministro da Justiça, quer que a investigação vá até ao fim,
exonera-o e manda a PIDE arranjar um caldinho em que Mário Soares, Francisco
Sousa Tavares, Urbano Tavares Rodrigues são presos com a acusação de que terem fornecido as informações ao jornalista inglês.
Posteriormente, Mário Soares é deportado para o exílio em São Tomé e Príncipe.
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