segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O NOVO QUOTIDIANO


Agora que os vizinhos não podem sair

se casa para a rua. A única liberdade que têm

é sair para os quintais das traseiras, e a única

liberdade que eu tenho é a de ver o que fazem. Até

agora, os pátios eram depósitos de lixo onde

a erva crescia no meio de móveis sem préstimo,

de restos de obras, e os únicos moradores eram

os pombos. De repente, os quintais mudaram

de aspeto. O lixo começou a ser tirado,

durante alguns dias ouviram-se máquinas

de cortar a erva e os arbustos selvagens,

e apareceram mesas e toldos para almoços

ao ar livre. De repente, os quintais apareceram

floridos, as árvores foram limpas de ramos

partidos e plásticos, isto é, a paisagem

que eu tinha da minha varanda das traseiras

transformou-se, de uma semana para a outra,

e apareceu uma vida que nunca tinha visto:

de um lado, laranjeiras carregadas de cor de

laranja, do outro o amarelo dos limoeiros,

ao fundo o rosa de roseiras até hoje escondidas

por caixotes e embrulhos de antigas mudanças.

 

E agora, se quero ver que o mundo continua

habitado, em vez de olhar para a rua olho

para esses quintais das traseiras e até ouço,

de vez em quando, o ruído de crianças que

jogam à bola, as conversas de vizinhos que

almoçam no pátio, os cães a correr a caminho

do portão. E num pátio do lado, nos intervalos

das aulas à distância no computador, um dos

estudantes do rés-do-chão fazia ginástica. Todos os dias

                    se dedicava a flexões, a corridas

circulares, a movimentos com os braços. Até ontem,

                    quando o vi a dar voltas ao pátio

de cimento a fazer o pino. E concluí que

a razão está do lado dele, ao descobrir que

não há outra forma de andar neste mundo

ao contrário.

 

Nuno Júdice, inédito publicado no JL


Legenda: fotografia Shorpy

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