Um dos nossos mais antigos repórteres
fotográficos, o Leonardo Negrão, tem por hábito publicar, a preto e branco no
Facebook, imagens dos camaradas de redação, atuais e antigos, em momentos de
trabalho ou convívio, numa espécie de álbum digital a que chama “Para memória
futura”.
Sabemos que as memórias são diferentes
de pessoa para pessoa; o que uma acha relevante, outra pode nem ter notado.
Sabemos também que um país tem tantas memórias como cada um dos seus cidadãos,
e que há memórias coletivas de determinados grupos de pessoas que partilharam
experiências comuns. Todas estas, incluindo as das fotografias do Leonardo,
constituem a história e reforçam as raízes de uma nação.
Cada vez que há tentativas de
desvalorizar, contrariar ou mesmo apagar algumas dessas memórias, quem as
guarda reage, naturalmente, com alguma exaltação. Sejam as daqueles que, por
exemplo, viveram na ditadura sem sobressaltos, sejam as dos que nunca viveram
de outra forma nessa época senão em sobressalto. Ambas merecem respeito e
compreensão, mesmo sabendo que todos fizeram escolhas.
Por tudo isto, quando se olha para os
2626 nomes de ex-presos políticos talhados numa pedra à entrada do Forte de
Peniche, antiga cadeia do Estado Novo, transformado em Museu da Resistência e
Liberdade, inaugurado neste sábado, e se pensa no que sofreu cada um deles e
delas (há duas mulheres, cuja história é contada, nesta edição, pela nossa
jornalista Alexandra Tavares-Teles) qualquer silêncio que se pretenda impor sobre
as memórias destas pessoas, das suas famílias, é, tão-só, indigno.
Não digo isto porque entre esses 2626
nomes está o do meu pai, nem porque só quase adulta me descobri, em memórias
escritas num diário, como a menina de 3 anos que acordava todos à noite com os
seus gritos de pesadelos e obrigava todos os que com ela compartilhavam uma
casa para filhos de presos políticos a procurar, antes de adormecer, “animais
maus” debaixo da sua cama.
Nesse diário, escrito por uma mulher que
se tornou depois pedagoga e estudiosa destes traumas dos filhos da ditadura, a
interpretação é de que os tais bichos simbolizavam os PIDES que eu tinha visto
a irem buscar o meu pai a casa.
Não sei. Sei que os pesadelos não me
deixaram muitos anos, mas aprendi a enfrentá-los e a vencê-los. Acredito que
outros filhos e pais de presos políticos também o tenham conseguido. A maioria
dos nomes registados na tal pedra à
entrada da antiga cadeia - que alguém, que não respeita a memória, queria
transformar em hotel - são de portugueses comuns, mas também há cerca de uma
centena de estrangeiros, espanhóis principalmente, mas também angolanos,
moçambicanos, goeses e até alemães. Todos ali estiveram encarcerados pelo seu
pensamento, porque escolheram enfrentar os monstros.
É essa resistência que, individual ou
coletiva, jamais deverá ser esquecida - mesmo se há quem, como é caso dos
representantes da Iniciativa Liberal na manifestação do 25 de Abril na Avenida
da Liberdade, não tenha encontrado nada mais apropriado como palavra de ordem,
num dia em que se celebra o fim de um regime que perseguiu, torturou e matou
comunistas (ou os que eram tidos como tal), e num local onde muitos dos
sobreviventes dessa perseguição se reúnem a celebrar, que “comunismo nunca
mais”.
Num país no qual uma lei aprovada em
1997 para permitir aos presos políticos da ditadura, e aos que viveram na
clandestinidade, pudessem contabilizar esse tempo para efeitos de pensão nunca
foi regulamentada, o mínimo de reparação devida a quem gastou anos, por vezes
décadas da sua vida, nos calabouços do Estado Novo é respeito pela sua coragem
e sacrifício.
Além da sua disruptiva e oportuna
declaração sobre o dever de reparação histórica pelos desmandos do Império
português, Marcelo Rebelo de Sousa parece ter sentido a necessidade de
sublinhar que esse respeito é um fator essencial da preservação da memória
coletiva do país.
O Presidente da República podia só ter
estado na inauguração oficial do Museu da Resistência, proferido palavras de
circunstância. Mas escolheu esperar a inauguração protagonizada pelas centenas
de resistentes, ex-presos políticos e respetivas famílias, que decorreu mais
tarde.
Quem o viu, de cravo vermelho ao peito,
à porta do Forte de Peniche - a mesma porta por onde, 50 anos antes, saíram em
liberdade os últimos detidos -, seguindo depois, anónimo (não quis câmaras), na
massa anónima que entoava a Grândola Vila Morena, sentiu que também ele,
humildemente, queria render homenagem a quem ali tanto sofreu. E cantou com
eles a música histórica de Zeca Afonso. Para e pela a memória futura.
Valentina Marcelino,
hoje, no Diário de Notícias
Legenda:
fotografia da Ordem dos Arquitectos Secção Regional Sul.
O memorial,
com 21 metros de largura, 4 metros de altura e com cerca de 40 toneladas,
localiza-se na entrada interior da fortaleza e contém a inscrição de 66 mil
carateres que escrevem os nomes de 2510 presos políticos.
No topo
do memorial, está gravada uma frase do historiador e escritor António Borges
Coelho, também ele preso político em Peniche:
"Nomeai um a um todos os nomes
Lutaram e resistiram
A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta fortaleza"
O memorial com o nome de todos os que por ali passaram, foi um projeto desenvolvido pelo Atelier AR4 Arquitetura e executado pela Frademetalúrgica.
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